Viver numa cidade pequena é como ver o mesmo filme várias vezes. Ainda que possa ter algum encanto, a história é sempre a mesma. O Adérito acabou a escola, pegou no negócio do pai. Porque nestes sítios os filhos ainda continuam a obra dos pais, e os filhos deles também. A menos que algo mude entretanto, ou o negócio vá à falência. O que é pouco provável. As pessoas estão habituadas a comprar as coisas sempre no mesmo sítio.
A Sara é filha do Dr. Soares. Provavelmente, já nem ele se lembra do próprio nome (é outra coisa destes sítios, os cargos são sobrevalorizados, ainda). O Doutor, veio para a cidade por razões familiares. A avó tinha falecido e deixado uma casa e uns terrenos. E ele voltou em nome das memórias da infância, dos verões passados no jardim da avó. A verdade é que apenas os laços nos fazem voltar a estes sítios.
O Adérito, que desde que o pai falecera era o Sr. Adérito (vá-se lá perceber a lógica destes sítios), deixou-se fascinar pela Sara na primeira vez que ela lá entrou. Tinha vinte e um anos, e ela menos três. A menina Sara pedia sempre as coisas com delicadeza e um sorriso. Agradecia sempre no fim, mandava sempre pôr na conta do senhor doutor. E quando não o fazia trocava sempre as moedas de vinte com as de cinquenta escudos. E o Adérito aproveitava, mais uns segundos, e deliciava-se de cada vez que ela se chateava com ela mesma por não conseguir acertar com as moedas. Dizia sempre obrigado e boa tarde.
Eventualmente lá se casou com uma Alzira, filha do Sr. Justino da retrosaria. Toda a gente achou que era o destino, menos o Adérito, que continuava a sonhar com a Sara que passou de ir todos os dias à mercearia para ir só aos fins de semana e depois deixou de ir de todo. O que, diga-se, lhe roubou claramente o sorriso, tornou-lhe os dias mais pesados. Já não tratava os vegetais, nem a encomenda da Dona Agustina com o mesmo empenho. Esquecia-se sempre de algo.
Hoje, muito mais velho e cansado, principalmente cansado, ainda é casado com a Alzira de quem tem dois filhos, que quando acabarem a escola seguirão as pisadas do pai. A vida está complicada e dificilmente arranjarão emprego noutro lado. O Dr. Soares morreu, o que foi um acontecimento sentido na aldeia. O Adérito foi ao funeral e não deixou de pensar na Sara um único segundo. Bem a tentou procurar por entre a multidão e nos comentários das pessoas. Perdeu a esperança. Corpo enterrado, voltou para a loja, tinha muito trabalho à espera.
As beatas da cidade que tinham como profissão ir a funerais, não paravam de entrar a sair. A pedir isto e aquilo. O Adérito cansado, a tentar chegar para todos os pedidos.
- São quatro euros e vinte.
A senhora, com a mão cheia de moedas, a hesitar quais escolher.
- Peço desculpa, ainda não me consegui habituar a estas moedas, quando finalmente consegui distinguir as de vinte das de cinquenta escudos trocaram-me as voltas.
O Adérito sorriu, muito. Pegou nas moedas, foi à caixa, fez o troco.
- Aqui tem o seu troco, menina Sara.
Os laços são a única coisa que nos fazem voltar a estes sítios.