Voz

Sempre vi a música como um acessório. Não me lembro de ouvir música, ponto. É sempre enquanto leio, enquanto escrevo, enquanto me deito na cama e fico a olhar para o tecto à espera que as pequenas manchas de humidade comecem a formar desenhos. Não me lembro de ouvir música, apenas ouvir. Como nos filmes, a música é apenas um acessório, algo que embala a vida, que marca o ritmo.

A Teresa, que canta adoravelmente, não foi excepção. Foi um acessório, daqueles que durante o tempo que dura o encanto abrilhantam a vida, até se tornarem banais. Vi-a pela primeira vez a cantar num bar. Cantava em francês, o que já não é habitual, e só me prendeu a atenção por esse factor. Passei o tempo em que ela esteve a cantar a tentar encaixar as palavras nos pequenos fósseis que me restam das aulas de francês do ciclo. A sonoridade dos pês e dos rês pronunciados da maneira que só os franceses sabem, encantou-me. A música nem a ouvi, não me lembro de a ouvir. Habituámo-nos demasiado ao inglês. A globalização tem destas coisas, impinge-nos o inglês e trouxe-me a Teresa.

Nasceu na Argentina, o pai – que ela visita todos os domingos – é português, a mãe era checoslovaca (quando ela nasceu ainda se chamava assim e foi ficando). Com cinco anos foi viver para França. Uma confusão demasiado confusa que, com toda a certeza, daria uma fantástica biografia. Não é todos os dias que um português e uma checoslovaca se encontram na Argentina e se apaixonam. Aliás, nunca soube pronunciar o apelido materno da Teresa da forma correcta, demasiadas vogais juntas. Felizmente o pai era português e tinha um apelido fácil de pronunciar: Lopes.

Quando acabou de cantar, desceu do palco. Misturou-se com o público. Esperei que acabassem os aplausos, que lhe oferecessem as flores. Esperei que os amigos (porque há sempre amigos no público) lhe dessem os parabéns, e pedi-lhe um autógrafo. Perguntei-lhe onde podia comprar o disco e ela disse-me que ainda não havia. Convidou-me para beber um copo, o que me poupou trabalho. Há sempre medo de ouvirmos um não quando convidamos alguém estranho.

Uma semana depois estava a viver comigo, o que eu tolerei. Tinha por hábito cantar incessantemente enquanto estava em casa, o que me poupava o trabalho de pôr um disco logo pela manhã. Gostava de a ouvir cantar pelos corredores. Passeávamos ao fim da tarde, durante o dia eu fazia o que tinha a fazer, ela cantava. De vez em quando víamos um filme. Pouco mais coincidia nas nossas vidas que o facto de habitarmos o mesmo espaço, partilharmos a mesma cama. Ela gostava de cantar, eu gostava de ouvir, era o que nos unia.

Um dia ela lançou um disco. Eu, que nunca cheguei a cansar-me de a ouvir cantar, fui assistir a mais um concerto. O bar era o mesmo em que conhecia a Teresa, mas tudo mudara entretanto. Gradualmente, o bar enchera-se de gente. Em cada concerto, às caras habituais juntavam-se caras novas.

Quando o concerto acabou, fui o primeiro a cumprimentá-la (porque há sempre amigos no público), o primeiro a comprar o disco e a pedir-lhe um autógrafo, que ela não me tinha chegado a dar. Prometi a mim mesmo que havia de o ouvir sempre ao acordar. Sempre. Ofereci-lhe uma flor, encostei a minha cabeça à dela e, segurando o disco como uma promessa, disse-lhe ao ouvido “É a última noite que passamos juntos, já tenho a tua voz”.