Mónica

Estes dias assim trazem-me sempre recordações da Mónica, que usava óculos e eu sempre lhe disse que era por ler demasiado. Só deixámos de nos ver porque ela me trocou por um livro de um escritor italiano que ela jurava a pés juntos ser fantástico, e que não conseguia parar de ler. A Mónica, que tinha sido criada pelos avós, tivera desde pequena uma paixão assolapada pelo seu avô. Júlio era o seu nome e tinha uma divisão da casa a que chamava biblioteca, sem que esse compartimento tivesse mais elegância que uma dispensa de livros em que o pó se acumula, e que não lera nem metade deles. Tinha uma cultura excepcional, obviamente não sabia tudo, mas sempre que era confrontado com algo novo fazia questão de investigar. Os únicos livros que leu com verdadeiro gosto foram os volumes da enciclopédia: não tinha paciência para ler histórias, e não encontrava qualquer fonte de sabedoria nisso.

A Mónica prometera a si mesma saber, pelo menos, tanto como o avô, e fazia-o da forma que o Avô Júlio nunca fizera: lendo compulsivamente livro atrás de livro. Lia de tal forma que se esquecia do mundo, e de mim também – mas não foi por isso que deixámos de nos ver. Muitas vezes estávamos na mesma sala, sempre da casa dela, com a chuva a bater nas janelas, e ela lia, lia, lia e eu via televisão, via, via. Não falávamos, porque outro problema que a Mónica tinha era perder-se facilmente na leitura. Tinha dificuldades em decorar os nomes das personagens e as relações entre elas – não só nos livros, mas em tudo -, mas insistia em ler aqueles escritores hispano-americanos demasiado confusos e entediantes. Então eu entretinha-me a ver televisão, ou a ouvir a música que a Mónica estivesse a ouvir, lia uma ou outra revistas e fotografava-a. No início ficava irritada, mas depois aprendeu a ignorar. Se maior parte das fotografias eram meros instantâneos de roupão e cabelo despenteado, ainda consegui uma meia dúzia de fotos dignas.

A certa altura, a televisão já não dava nada que prestasse, a colecção de discos dela já havia passado completa pelo menos três vezes, as revistas nada traziam de novo, e as fotografias, essas, não podem evoluir muito se a modelo insiste em ficar estática, deitada no sofá de roupão (ou roupa interior no Verão). Um dia levei um amigo, abrimos uma garrafa de whisky e embebedamo-nos terrivelmente. A Mónica continuou a ler. Levei uma amiga com quem fingi intimidade e ainda outra com quem tive intimidade. Ao fim de quatro ou cinco beijos a Mónica mudou a página e fingiu que não olhou, mas continuou a ler, não tinha tempo a perder se queria cumprir a promessa.

Um dia, quando me despedi do último convidado de uma festa que havia organizado em casa dela, ela pousou o livro que entretanto havia acabado, levantou-se do sofá e abraçou-me pela primeira vez. Amámo-nos no mesmo sofá em que ela lia e eu a fotografava. Acendi um cigarro e ela disse-me que talvez fosse melhor não nos vermos mais, como antes mo havia dito várias vezes. Vesti-me, fui para me despedir, mas já tinha começado a ler um qualquer outro livro. Fui embora. No dia seguinte telefonei-lhe, como sempre fazia de cada vez que a Mónica me dizia que não me queria ver mais, e desta vez atendeu: disse que não podia falar, que estava a ler um livro de um escritor italiano que jurava ser fantástico, e que não conseguia parar de ler. Não voltei a tentar. Trouxe comigo as fotografias, sem que alguma vez tenha revelado os rolos.