hoje porque estava a chover fiquei em casa a ver as gotas deslizar na janela, a ouvir a chuva bater na janela. peguei na antiga máquina de escrever e ao som do bater das teclas escrevi quase sem parar para respirar:
i
como mortos, os dois corpos jaziam lado a lado naquele quarto de paredes despidas, gélidas, brancas. pureza essa apenas quebrada por uma janela que dava para um vale com um rio ao fundo que a noite não deixava ver.
o frio imperava e os corpos ressentiam-se disso. ganhavam um tom quase que anilado e o tremor dava um movimento engraçado à cena.
num dos cantos, no chão, um ramo de flores já cansadas pelo tempo. estilhaços de uma garrafa de vinho espalhados por todo o chão, marcas de uma violenta discussão. escorrendo pela parede, uma gota de sangue.
a porta de madeira que rangia ao sabor do vento dava para uma casa que um sonho desfeito se encarregara de abandonar e preservar tal qual ficou desde o último momento em que fora habitada. os quadros na parede, os sofás onde quase ainda se podia sentir o calor de quem lá se sentou. na cozinha ainda o cheiro dos cozinhados da criada negra, uma das muitas que a senhora condessa tinha.
no ar, uma viciosa mistura de bafio e perfumes que se evaporaram ao longo dos anos. na biblioteca o deslumbramento do conhecimento antigo, abandonado. livros com páginas versadas de tanto uso. tesouros rectangulares de folhas feitos, valorizados pelas palavras.
os vidros partidos permitiam que o vento gélido entrasse provocando arrepios a qualquer corajoso aventureiro que tentasse explorar a casa. as cortinas bailavam ao som do mesmo vento. o assustador sibilo que o ar fazia ao passar pelas arestas dos fracturados vidros.
no quarto ainda os corpos moribundos, agora enlaçados numa luta desesperada pela sobrevivência. unia-os a simbiose indispensável daquele momento. já moribundos beijam-se, uma espécie de despedida para a morte já há muito anunciada.
na parede do quarto escorre ainda a gota de sangue que agora atinge o chão. liberta-se então por toda a casa um choro agudo de criança, maleficamente ensurdecedor. os corpos reagem com um último reflexo no olhar, tombando de seguida mortos. o frio daquele último abrigo e o medo daquele amor ser descoberto foram intoleráveis. a demência matou-os...
ii
um jovem poeta sabendo que naquela casa estava a sua inspiração, que daquele sítio vinham as vozes que ouvia na sua cabeça, entrou no edifício pela porta da cozinha. caminhou a medo até à sala, assustado pelo que poderia encontrar. chegando à sala deparou-se com o abandono. em tom de libertação gritou: “estou aqui! devora-me!”. naqueles momentos em que esperou ouvir uma voz de volta, pesou-lhe a desilusão nos ombros, a loucura. hesitou mexer-se, desafiando a mais que óbvia razão. frustrado pela falta de resposta sentou-se num só movimento, derrotado, num dos muitos sofás esperando que a voz vinda de lado algum finalmente respondesse.
fechou os olhos e imaginou vida naquela casa. o cheiro de comida misturado com o cheiro da lareira. o cheiro das pessoas. os raios de sol a entrarem pela janela numa manhã de outono. uma jovem bonita deitada no divã junto à janela a ler shakespeare e a sonhar com um amor eterno tal romeu e julieta. o lufa-lufa das criadas a preparar o almoço e em arrumações. os ramos de flores recém-colhidas por todo o lado.
abre os olhos e os resquícios do seu sonho duram ainda alguns segundos. os suficientes para gerar a dúvida entre sonho e realidade. não tendo outro sítio para onde ir o poeta vai em busca de uma cama onde se deitar.
no primeiro quarto em que entra encontra uma grande cama, com um aspecto suficientemente quente e confortável. na parede um quadro: dois corpos nus abraçados em cima de uma cama, o olhar moribundo durante um último beijo. paredes totalmente brancas exceptuando o rasto de uma gota de sangue do tecto até ao chão. na moldura o título: «retrato do amor eterno».
incansável e apressadamente, nos meses seguintes o jovem poeta escreveu o seu primeiro e único livro com o mesmo título do quadro. quem encontrou o seu manuscrito, estrategicamente disposto por baixo do quadro, junto ao corpo suicidário do jovem poeta, ao tentar lê-lo, apenas conseguiu decifrar o título e o capítulo final, orgasmo de caligrafia cuidada do poeta.
insónia #1
Quando entras no bar e a vês ao longe a sorrir por ele lembras-te que não és só tu que tens um passado. E é aí que pensas que já chega, que já foi longe de mais. É aí que decides que não podes continuar assim. Fazes planos para mudar de cidade, de país e ficas no mesmo sítio porque sabes que não adianta fugir. Dizes já chega e durante dois ou três dias cumpres, não mais que isso. A necessidade de te enganares a ti mesmo é demasiado grande. Acabas por te cruzar com ela, talvez ela te telefone, e és tu quem sorris por ela. Com algo tão simples como uma qualquer piada que vos seja familiar, que te faça sempre rir. Ou talvez seja pela forma como ela pronuncia aquela palavra. O certo é que quando dás por ti, acreditas que o passado foram apenas vocês os dois, e que tudo pode voltar a ser como foi. Mas não pode. Um dia vais ter que dizer já chega e vais ter que cumprir. Mas não hoje.