hoje notei que lentamente estou a envelhecer. os estranhos com quem me cruzava na rua começam a desaparecer, a velha meia corcunda que todos os dias encontrava ao sair de casa com os sacos de compras, o velhote sempre com o seu fato estilo anos trinta, que sempre que via uma mulher tirava o chápeu e dizia bom dia menina, como vai? e continuava a andar, não sei para onde. nunca soube os nomes deles, eram apenas os estranhos com quem me cruzava todos os dias na rua, no autocarro, no metro, na tabacaria. estranhos que não o eram mais que alguns conhecidos. no fundo, eram parte da minha vida. faziam parte do meu dia a dia, quase que os conhecia. por muito que tentasse evitar acabava sempre ouvindo um pouco de uma conversa aqui, outro ali. ia conhecendo algo desses estranhos, que não o eram e são tanto assim.

agora que todas as caras com quem me cruzo são diferentes, ainda que igualmente familiares, penso se um dia alguém reparará que já não apanho o mesmo autocarro, já não passo pelas mesmas ruas, se a mulher bonita do autocarro notará que já lá não estou a olhar para ela e, sem ninguém saber, a fantasiar com ela, com um olá dela, um sorriso, um olhar mais cúmplice. ou se o velho que vestia roupas antigas pensou em mim antes de morrer (ouvi no café que tinha morrido), ou se algum tivesse ajudado a senhora com as compras ela tivesse vivido mais algum tempo. não o fiz. não o fiz porque aí deixavam de ser estranhos, e por muito familiares que fossem, perderiam o sentido se fossem conhecidos.