A Luísa gosta de ir a festas. Não pelo aspecto social da coisa, porque para isso claramente não tinha jeito. Mas porque é das poucas oportunidades que tem para se sentar num canto a observar as pessoas. Para as invejar. Não gosta quando reparam nela, e pior ainda, quando metem conversa. Olá, sou o Paulo. Olá, sou o André, tu deves ser a Luísa de que tanto se fala. Isola-se de preferência num dos cantos, para poder ter um ângulo maior. E de todas as pessoas da sala talvez seja a única que realmente conhece todas as demais presentes. Cansa-se depressa de conversas de circunstância. O que fazes? Onde moras? A sério? Imaginava-te a morar noutro sítio.

Até que numa das festas, num qualquer apartamento em Alvalade, teve um rival. Alguém que, tal como ela, ficava num dos cantos e se recusava a interagir. E claro, alguém que reparou nela, alguém que a poderia estar a conhecer como ela conhecia todas as outras pessoas presentes. E ele, como ela, saberia os truques, saberia interpretar o posicionamento, os olhares sobre as pessoas. A Luísa sentiu-se observada sem licença, o que era ainda pior do que a sensação de tentarem falar com ela só porque sim. Porque fazia parte dos pressupostos de estar numa festa.

A Luísa tem lábios que apetecem beijar, um olhar doce. Tem o mistério de que os homens tanto gostam. Usa óculos, e tem alturas em que se esquece que os óculos não tapam o olhar, como os de sol. Às vezes é como nos filmes, com um qualquer truque de câmara todos os presentes na sala desaparecem, ficam só os dois. Observam-se. Lutam em silencio across the room.

A Luísa nervosa, exposta. Como se lhe estivessem a observar as mais profundas entranhas da personalidade. Tinha que agir, tinha que aniquilar a concorrência. Encheu-se de coragem. Pôs o seu andar mais confiante. Atravessou a sala.

– Olá, eu sou a Luísa. Sou jornalista e moro na Avenida de Roma. Vamos sair daqui?

E ele seguiu-a até ao carro. Sem dizer nada, sempre a observar, sempre a conhecer. A Luísa ligou o carro, arrancou. Ele finalmente falou.

– Já agora, chamo-me...

– Não quero saber, não preciso de saber.

Voltaram ao silêncio, só quebrado por ele para perguntar se podia acender um cigarro. Ao que ela respondeu apenas com um aceno de cabeça. Foram duas horas e meia de silêncio. Passaram a ponte, estavam já longe de Lisboa. A Luísa saiu da estrada. Parou o carro no meio de um descampado. Quando ele se preparava para falar, beijou-o. Desarmou-o. Beijaram-se. Caçaram-se como predadores são.

Quando se cansaram, pararam. Olharam-se e pela primeira vez sorriram um pouco. Derrotados pela exaustão. A Luísa ganhou, sabia que tinha ganho. Quanto mais não fosse porque ele julgava ter ganho. A Luísa pôs o olhar mais apaixonado, o sorriso mais terno. Estendeu-se para chegar à mala que estava no banco de trás. Ele sorria, sorria muito. Já não era a primeira festa em que tinha visto a Luísa e nunca pensou que pudesse acabar assim. No meio do nada, sem dizer nada. Ela esgravatava na mala, sem encontrar o que procurava.

Ele não conteve um esboço de riso, porque delicia-se com o facto de as mulheres nunca encontrarem nada na carteira. A Luísa, irritada, porque pela primeira vez alguém a tinha conquistado, em vez de um cigarro, tirou da mala a arma com que tinha planeado matar-se. Disparou três vezes contra o peito dele. Acendeu um cigarro, pôs a nona de Beethoven, e sentiu a sua própria vida a borbulhar de novo.


obrigado
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o amor também se gasta

Suponho que seja o único caminho a seguir, voltar atrás e destruir o que ainda resta de nós. Porque só assim podemos esquecer, só assim podemos largar. Só assim poderemos alguma vez parar de nos procurar numa ausência preenchida de sentimentos ainda por esgotar – o amor também se gasta. Suponho que o único caminho seja gastarmos o que resta desse amor que tem que acabar. Sempre com a certeza que será a última vez, que tem os dias contados. Com a capacidade de entender que durará apenas até o amor se gastar de vez. Que ainda que possa parecer que tudo está bem outra vez, tudo voltará ao mesmo mais dia, menos dia.

O fim tem sabor de sequela. A dor ainda é demasiada para a vivermos separados, pareceu tudo de repente, não pareceu? O coração não aguenta, as mãos insistem em estender-se sobre a mesa procurando-se. Há toda uma necessidade de resistir a mais impulsos que aqueles a que é possível resistir. E nas palavras (poucas) que trocamos descaímo-nos sempre para aqueles nomes carinhosos e parvos porque nos tratámos. Tínhamos tantos planos, tantas coisas para viver, que ainda não é possível fugirmos disso. Ainda não é possível fazermos outros planos. Considerar outras pessoas que não a nós. Nem que seja por vingança, de nunca vires a ter ninguém como eu. Suponho que o único caminho seja esse. Destruir tudo o que (ainda) temos, para nunca mais voltarmos sequer a olhar-nos, para podermos seguir em paz.

A primeira coisa que a Rita faz quando chega a casa é tirar os sapatos. Tem que usar saltos altos o dia todo, moem-lhe os pés. E para além do alívio, adora a sensação de tirar os pés dos sapatos e sentir a diferença de altura para o chão, sentir-se de novo mais baixa. Dá alguns passos, curtos, saboreia os pés a pisar o chão frio, e só depois calça os chinelos para os voltar a sentir quentes.

Como qualquer coisa, bebe (mais) um café, deita-se no sofá e só quando está com frio se cobre. Adormece por dez minutos e acorda sem vontade de ir para a cama. Desliga a televisão, lê algumas páginas do livro que está a ler. É no fim da terceira frase – que não tinha absolutamente nada a ver com isso – que se apercebe que agora que tinha sucesso se sentia ainda mais entediada que quando o não tinha. Pelo menos antes sonhava. Nada lhe resta para desejar.

Enche um copo com whisky. Uma garrafa que tinha para oferecer aos amigos e que nunca tinha sido aberta. Encostou-se à janela, acendeu um cigarro, deu vários goles do copo. Apercebeu-se que alguém no prédio em frente a olhava, e olhou de volta. Permitiu-se sentir algo que pensava já não poder sentir. A sedução de um corpo frágil, a atracção do desespero. Olhavam-se nos olhos como se tentassem caçar. Esvaziou o copo e encheu-o de novo, aquecia-lhe o sangue e adormecia-lhe a alma. Quando se sentiu a apaixonar por aquela estranha, posou o copo, apagou o cigarro (o terceiro), e afastou-se do seu próprio reflexo.