A tristeza tem uma grande vantagem: não precisa de mais ninguém. A felicidade não. É uma chatice. Exige ser partilhada, o que se torna complicado quando não há ninguém por perto. E depois aparece uma angústia que se consome a si mesma. A felicidade faz-se solidão.

E depois há todo um preconceito contra a tristeza. Que não se deve sentir, que se deve excomungar quanto antes. Mas talvez, só talvez, a tristeza deva ser vivida com a mesma intensidade que qualquer outra emoção. O doce não é tão doce sem o amargo, ou qualquer coisa que o valha. Tem um encanto que hipnotiza, a sedução de uma música a condizer. E a derradeira beleza das coisas não é senão uma faca que se crava no coração.

Assim como assim, acaba sempre em lágrimas. De felicidade. De tristeza. Tanto faz.

Preferia que assim não fosse, mas há sempre um depois. É assustador. Porque quando pensas que retomaste o controlo das coisas, há um sorriso que arrebata. Há alguém que se põe ao teu lado e te pega na mão e te diz “vamos?”, e tu que fazes? Nada. Deixas-te ir sem saber bem onde, apenas porque aquela mão a segurar na tua te dá uma sensação que pensavas não poder voltar a sentir. Depois há os sorrisos, as gargalhadas de coisas sem riso, os beijos. os corpos que parecem encaixar na perfeição e que se puxam inexplicavelmente.

Tens aquela mão que se entrelaça na tua, e que te puxa, que te leva não sabes bem para onde, ainda que o saibas perfeitamente. É assustador. E perfeito.

and every word is nonsense but I understand it *

Quase nada resta agora que o tempo trouxe a distância necessária à compreensão. Porque o tempo tem esta particularidade irritante de realmente tudo curar. Porque o vazio que fica acaba por ser substituído por outro qualquer vazio mais abstracto. Deixa de ser aquele alguém e passa a ser apenas alguém.

Há também o masoquismo inerente à coisa, e o luto necessário. Há o cultivar do vazio que fica, o irresistível cravar da unha na ferida. É o coração que dói, mas é a cabeça que bate contra a parede. É o coração que morre e a cabeça que continua. E só aí, só quando nada resta ao coração para continuar a bater, é que o vazio se preenche. Por mera questão de sobrevivência.

A cabeça continua, continuou. Sobreviveu, à espera de algo que pudesse reactivar a circulação: o teu sorriso que sempre sorri, os pequenos detalhes, as pequenas ironias. São as músicas, as fotografias, os livros, as palavras, a linguagem só nossa que partilhamos. É tudo aquilo que sou reflectido de uma forma que conforta e não assusta. É o coração que aos poucos ressuscita.


* counting crows - anna begins

Cruzaste-te comigo em pensamento...

...e fingiste que não me viste.

Não espero que compreendas. Talvez a única maneira possível de estar no mundo seja sozinho. Para todos os efeitos a culpa é minha. Porque te disse que podíamos ficar amigos quando o amor se esgotasse a si mesmo, sem te dizer que pouco me preocupo com os meus amigos, que não tenho tempo para eles.

Eventualmente acabarás por aceitar as saudades como parte integrante de um outro qualquer sentimento, que então não saberás muito bem definir. Ou uma mera existência sem nada que se lhe possa associar. Alguém que passou, apenas. Por mim, tudo bem. Delicio-me demasiado com os caminhos do meu próprio pensamento, da minha própria imaginação. Encontro muito mais felicidade nas coisas como elas poderiam ser, do que nas coisas como são.

Não espero que compreendas que, na minha estranha curiosidade por tudo, eu não queira sequer saber. Que possas adoecer, até morrer. Que possas encontrar beijos mais doces, braços mais ternos. Que possas até convencer-te que afinal não valho o tempo gasto comigo. Não quero saber. Porque para mim, num constante virar e revirar de “e ses” completamente imaginários o nosso amor nunca acabou.

É como se o cansaço me preenchesse por dentro. Como se preenchesse cada espaço vazio e empurrasse tudo o que existe contra as paredes, como se asfixiasse. O raciocínio já não existe, os pensamentos brotam soltos, sem nexo, sem ligação. Não durmo há três dias e já não sinto o cansaço. Já não me sinto sequer. Vagueio e é tudo. Como se o corpo respondesse sozinho, numa qualquer absoluta abstinência de emoções. Absorvido numa estranha forma de pensar. Palavras soltas, sem pronomes, artigos e quaisquer outras palavras que tenham apenas como função ligar outras palavras umas às outras.

Dormir. Dormir. Dormir. Amanhã. Amor. Tu. Dormir. Pensar. Morrer.

Dormir.

the wrong second of a two seconds story*

A Sara seguia a cento e quarenta e seis quilómetros por hora no comboio. Por qualquer razão, tinha reparado e fixado o olhar no pequeno painel electrónico num dos topos da carruagem. Meia dúzia de caracteres e tanta informação. Velocidade, temperatura (interior e exterior), horas… e talvez nunca tivesse reparado no tempo que um minuto demora a passar. Ao fim de dois aborreceu-se, encostou-se para trás, abriu o livro que trazia para ler. E naquele último segundo (que agora lhe pareceu rápido) antes de se debruçar na página que marcava com o dedo, olhou à volta.

De todas as pessoas que preenchiam de vida o espaço exíguo da carruagem, fixou-se numa. Fixou-se num olhar que atravessava o vidro e abraçava o mundo como se o visse pela primeira vez. Como se o tempo não existisse sequer. As mãos, grandes mas delicadas, pousadas sobre as pernas. Agora, a Sara olhava para aquele homem com o mesmo olhar que a tinha prendido. E o tempo, que lhe parecia parado, na realidade passava depressa. A Sara não só o fixava como o absorvia. Porque ela sentia já aqueles braços longos e as mãos grandes mas delicadas a envolverem o seu corpo.

Então, o homem, porque as pessoas têm destas coisas, ter-se-á sentido olhado. E naquela infinitésima parte de segundo que os olhos demoram a mudar de direcção, o tempo parou. A Sara hesitou, tremeu. Naquelas horas a Sara sentiu pela primeira vez que um estranho a tocava e a compreendia. E esse era um peso para o qual não estava preparada. Naquela infinitésima parte de um segundo, a Sara desviou o olhar. Escondeu-se no livro, e só quando percebeu que ele se deixara absorver de novo pela paisagem é que conseguiu ter forças para levantar de novo o olhar. Os minutos a durarem outra vez uma eternidade.

O comboio, eventualmente, parou, porque mesmo que pare, o tempo nunca deixa de passar. E ela levantou-se, pegou na mala, adiou o mais que pode a saída. Até que o comboio ameaçou partir, e ela teve mesmo que sair. Como se o cais fosse o regresso a um mundo onde cada segundo conta o tempo que demora a passar, e tenha que ser aproveitado como se não houvessem outros.

Com a mala pousada no chão, enquanto vestia no casaco, o comboio a passar lento, em aceleração, ele na janela a olhar o mundo, a absorvê-lo. E naquele último instante, quando ela já só pensava que não devia ter desviado o olhar, os olhares cruzaram-se. Por culpa do comboio. Não que ele ou ela tenham realmente feito algo por isso.

*cashback

_a ouvir



...em contínuo e repetitivo loop.

A Teresa acorda todos os dias à espera que aquele seja o dia em que tudo vai mudar. E talvez mude mesmo, não sei. Embora ela nunca o veja e todos os dias se lamente. Às vezes telefona-me, chora, chora muito. Não percebe que ontem sorriu um pouco, que hoje sorriu um pouco mais. A Teresa todos os dias leva a vida de todos os dias, no fundo acredita que é a rotina levada à risca que acabará por salvá-la. Então decidiu que se ia levantar uma hora mais cedo do que deveria, para fazer exercício. Sair um pouco para correr. Depois volta para casa, toma um banho, bebe um café em frente à televisão onde vê as notícias antes de sair para o emprego. Trabalha exactamente das nove às cinco e meia. Volta para casa, mas compra sempre fruta pelo caminho, na mercearia da Dona Aurora. Cada dia uma fruta diferente. Janta qualquer coisa, lê um pouco e vai dormir. Todos os dias a mesma coisa.

Um dia ligou-me, farta da rotina. Precisava de aventura, de paixão. Mas que não era capaz de se dar, de se deixar ir. Pediu-me que passasse por casa dela, mas que parasse pelo caminho para comprar vinho, tinto, de preferência. E que não demorasse muito. Que não conseguia estar sozinha e só queria sentir alguém.

Abriu-me a porta com o corpo despido. O olhar frágil. Tirou-me a garrafa da mão e disse-me «toma o meu corpo, que nada mais te posso dar».

É só mesmo um cigarro. Nada mais que um cigarro. Porque nada mais nos pode acontecer sem que nos percamos irremediavelmente. É esse o preço de estar só, de ser, essencialmente, só. Porque só o teu corpo me poderia arrancar de mim, e esse seria um indelével caos que não poderia nunca enfrentar.

Só mesmo um cigarro. Depois outro, eventualmente. Mas apenas isso. Nicotina. Para acalmar, para resistir ao teu corpo que chama por mim. Aos poucos envolves-me, devolves-me a mim. Um eu que não sou eu. Tiras a roupa. Devagar. O corpo não resiste, a carne é fraca. E a cabeça vai atrás. Mais um cigarro. Para acalmar. Para resistir. Quebrei o silêncio no qual tu insististe com um beijo. Apaguei o cigarro, era inútil resistir.

Tu ficaste

A culpa não é minha. Passaste e sorriste. Envergonhada. Disseste olá e adeus, que estavas com pressa. Mas ficaste, levei-te comigo para casa. Pensei em ti enquanto me sentei no sofá a fingir que olhava para a televisão, enquanto comia, enquanto tomava banho, no último segundo de consciência antes de adormecer.

Um dia esbarrámos. Na estação de comboios, porque não podia ser noutro sítio. Estava distraído, como sempre. Talvez não pensasse em ti, mas apenas porque ia distraído, porque estava recolhido no recanto do pensamento que não mostro a ninguém, que não sei mostrar. Porque aliás não sei mostrar nada de mim, se é que existe algo para mostrar.

Entre dois passos senti o teu corpo contra o meu, com a violência com que só dois estranhos podem chocar. E talvez apenas tenha chocado porque naquele último instante, a partir do qual as leis da física impedem que dois corpos se evitem, apercebi-me que eras tu e hesitei. Pedi-te desculpa, e sorriste aquele sorriso que me faz gaguejar, que me faz apanhar-te os livros do chão, ajeitar os óculos, ficar sem jeito.

– O prazer é todo meu.

E enquanto te afastavas, segui-te. A tentar resistir a essa tua timidez, a toda essa fragilidade que só eu parecia ver, a sentir por todo o corpo, ainda, o toque do teu corpo de encontro ao meu. E tu, ainda que seguisses o teu caminho em passos inseguros (como se quisesses voltar para trás e dizer-me algo mais), sentias claramente o meu olhar em ti. Parado, aquele recanto do pensamento a chamar por mim de novo. Mas os caminhos, o meu e o teu, esses, nunca mais se separaram.

Dizem que há pessoas que passam por nós e não nos dizem nada, outras que passam por nós e dizem muito… Eu digo-te que tu não passaste… Tu ficaste.*

Só o silêncio nos consola, e assim tem que ser. Ainda é cedo para palavras, coisinhas complicadas. Ainda é cedo para te dizer tudo o que quero fazer por ti. Ainda não é altura de te explicar que o caos há-de surgir por nós. O caos que constrói e delicia em cada peça em que se revela, a cor na tela branca. Ainda é demasiado cedo para sentimentos. Só o silêncio nos consola.

Cruzas as pernas na cadeira, à chinês, se é que os chineses se sentam assim. Tiras os óculos de sol, destapas os olhos para que me perca, e perco-me mesmo. Conversamos sobre coisas banais, como se não falássemos de todo. Mas o tempo vai passando à medida que as feridas cicatrizam nos braços um do outro. Talvez seja só isto, sem palavras, sem caos. Ou talvez seja isto que precisamos, e seja isto que fazemos um pelo outro, aquilo que não podemos pôr em palavras para não doer. Talvez. Faz sentido que seja assim.

Naquela noite não se beijaram como sempre faziam. Ele entrou, sentou-se à frente dela. Ela descruzou e voltou a cruzar as pernas. Perguntou-lhe se queria um chá quente, disse que lhe ia buscar uma toalha. Ele aceitou, agradeceu. Enquanto ele se secava, ela, encostada na ombreira da porta da cozinha observava.

– Bebe enquanto está quente.

Ele agradeceu, embrulhou-se ainda mais na manta que agora o cobria. Olhou-a, sentiu-a. O sangue a começar a fluir de novo.

– O que vieste cá fazer? Disse que não queria estar com ninguém.

– A mim também não me apetecia estar com ninguém.

Naquela noite não se beijaram, nem sequer falaram. Sabiam que seria inútil remexer em assuntos sobre os quais nada mais há a dizer. Afinal, estavam um com o outro para não estarem sozinhos, ainda que não lhes apetecesse estar com ninguém. Talvez fosse esse o único pressuposto, tolerarem a presença silenciosa um do outro.

Deitaram-se ao lado um do outro, próximos, mas não demasiado. Não fosse o desejo ocupar o silêncio. Mas também não dormiram. Quando o sol nasceu, ela levantou-se.

– Tenho que ir trabalhar, mas deixa-te ficar. Tens comida no frigorífico.

Antes de adormecer, embalado pelo som da água a cair no chuveiro, apercebeu-se. A mulher da vida dele não era aquela com que sonhava, mas aquela que lhe havia roubado o coração. Mas os olhos fecharam-se antes que ela saísse do banho, e nunca lho chegou a dizer.

Às vezes são precisas decisões erradas para seguir em frente. Talvez a velha lógica do passo atrás para dar dois em frente resulte mesmo. Talvez a única forma de libertação dos fantasmas seja esquecer que eles existem. O passado às vezes tem mesmo que ser esquecido, ainda que tenha sido ele a trazer-me aqui. Porque as correntes não se cortam, quebram-se.

Só podia ser assim. De outra forma não conseguia. A guerra é sempre uma luta pela paz, e quase sempre um mal necessário. É difícil deixar de olhar para trás, principalmente na paixão e no amor. Porque chega a um momento em que se tem que dizer «já não te amo, a começar neste exacto segundo».

Talvez não haja perdão para certas palavras, certas decisões, provavelmente não há mesmo. Mas de outra forma não me conseguiria jamais libertar. Não conseguiria deixar de olhar para trás, em vez de olhar em frente. Como tem que ser.

A vida tem que continuar. É um mal necessário. Ainda que quase sempre o passado nos envolva de tal forma que é quase impossível sair dele. Só pode ser assim. Talvez dê demasiada importância às coisas, talvez não, mas a morte da alma terá que ficar para outra vez. De repente sorrisos estranhos tornam-se quentes. Gente estranha, gente nova. E o passado que vai ficando para trás, quase esquecido. É preciso cortar, esquecer, arrumar numa gaveta para nunca mais.

– Já não escreves há muito…

Os velhos hábitos a precisarem de se recuperar. O desafio da folha em branco. Mas o tempo é sempre o tempo e não pára. E as frases que insistem em soar melhor apenas na cabeça. Um qualquer bloqueio entre a cabeça e a mão. Uma estranha sensação de repetição em câmara lenta.

A vida continua. Tem que continuar, ainda que as palavras se mantenham disfuncionais e disconexas.

Ligou a televisão sabendo que a iria desligar logo de seguida. Talvez pudesse dá-la a alguém, vendê-la não. Toda a gente tem já pelo menos uma televisão. Ele tinha televisão por cabo, Internet, telemóvel. Tudo o que pudesse fazer dele uma pessoa normal. Talvez devesse livrar-se de tudo isso, de todas as formas nada o entretinha como seria suposto. Os livros só lia um de cada escritor, e apenas livros que alguém aconselhava, de outro modo não saberia escolher.

Desligou a televisão, pôs um disco compacto, um dos quatro que tem. Um de jazz, um de ópera, a nona de Beethoven e um de rock, que nunca ouve. Toca o telefone. Deixa tocar três vezes antes de atender, como sempre. Era ela, como todos os dias àquela hora, não queria estar sozinha e ele dizia-lhe para aparecer. Das poucas companhias que ainda tolerava. O mundo cansava-o cada vez mais.

Quando ela tocava à campainha, já ele tinha lavado a loiça, feito a cama, deitado a roupa para lavar. Talvez fosse a última pessoa a quem ainda tentava agradar. Ela chegava, com um filme na mão que alugava pelo caminho. Ele não seria capaz de escolher. Assim como assim nunca acabavam de o ver. Ele sentava-se no sofá, num dos cantos, ela deitava-se ao lado dele. Algures a meio do filme, ele roubava-lhe um beijo. Sentia-se aborrecido, reparava demasiado nas imperfeições e irrealismos do filme. Achava toda e qualquer ficção demasiado previsível. E beijá-la, ainda que o fizesse todas as noites e da mesma forma, era uma forma de sacudir o tédio, de não ter que falar. Pagava-lhe em carícias o silêncio. Ela não se importava, até gostava. Era da maneira que não tinha que procurar um companheiro todas as sextas à noite, quando ia sair com as amigas. Aliás, a única noite da semana que não passava com ele.

As roupas quase rasgadas, espalhadas pelo chão. Os corpos suados, o perfume dos sexos ainda excitados. A respiração ainda acelerada. O fumo dos cigarros a preencher a sala. Palavras nenhumas, ou quase nenhumas. Declarações de amor, ainda menos. Claramente, não se tratava de amor, antes de algo bem mais intenso: a solidão de dois corpos que se necessitam um ao outro para fazerem sentido.

Viver numa cidade pequena é como ver o mesmo filme várias vezes. Ainda que possa ter algum encanto, a história é sempre a mesma. O Adérito acabou a escola, pegou no negócio do pai. Porque nestes sítios os filhos ainda continuam a obra dos pais, e os filhos deles também. A menos que algo mude entretanto, ou o negócio vá à falência. O que é pouco provável. As pessoas estão habituadas a comprar as coisas sempre no mesmo sítio.

A Sara é filha do Dr. Soares. Provavelmente, já nem ele se lembra do próprio nome (é outra coisa destes sítios, os cargos são sobrevalorizados, ainda). O Doutor, veio para a cidade por razões familiares. A avó tinha falecido e deixado uma casa e uns terrenos. E ele voltou em nome das memórias da infância, dos verões passados no jardim da avó. A verdade é que apenas os laços nos fazem voltar a estes sítios.

O Adérito, que desde que o pai falecera era o Sr. Adérito (vá-se lá perceber a lógica destes sítios), deixou-se fascinar pela Sara na primeira vez que ela lá entrou. Tinha vinte e um anos, e ela menos três. A menina Sara pedia sempre as coisas com delicadeza e um sorriso. Agradecia sempre no fim, mandava sempre pôr na conta do senhor doutor. E quando não o fazia trocava sempre as moedas de vinte com as de cinquenta escudos. E o Adérito aproveitava, mais uns segundos, e deliciava-se de cada vez que ela se chateava com ela mesma por não conseguir acertar com as moedas. Dizia sempre obrigado e boa tarde.

Eventualmente lá se casou com uma Alzira, filha do Sr. Justino da retrosaria. Toda a gente achou que era o destino, menos o Adérito, que continuava a sonhar com a Sara que passou de ir todos os dias à mercearia para ir só aos fins de semana e depois deixou de ir de todo. O que, diga-se, lhe roubou claramente o sorriso, tornou-lhe os dias mais pesados. Já não tratava os vegetais, nem a encomenda da Dona Agustina com o mesmo empenho. Esquecia-se sempre de algo.

Hoje, muito mais velho e cansado, principalmente cansado, ainda é casado com a Alzira de quem tem dois filhos, que quando acabarem a escola seguirão as pisadas do pai. A vida está complicada e dificilmente arranjarão emprego noutro lado. O Dr. Soares morreu, o que foi um acontecimento sentido na aldeia. O Adérito foi ao funeral e não deixou de pensar na Sara um único segundo. Bem a tentou procurar por entre a multidão e nos comentários das pessoas. Perdeu a esperança. Corpo enterrado, voltou para a loja, tinha muito trabalho à espera.

As beatas da cidade que tinham como profissão ir a funerais, não paravam de entrar a sair. A pedir isto e aquilo. O Adérito cansado, a tentar chegar para todos os pedidos.

- São quatro euros e vinte.

A senhora, com a mão cheia de moedas, a hesitar quais escolher.

- Peço desculpa, ainda não me consegui habituar a estas moedas, quando finalmente consegui distinguir as de vinte das de cinquenta escudos trocaram-me as voltas.

O Adérito sorriu, muito. Pegou nas moedas, foi à caixa, fez o troco.

- Aqui tem o seu troco, menina Sara.

Os laços são a única coisa que nos fazem voltar a estes sítios.

Um olhar. Foi quanto bastou. Porque há olhares que dizem tudo, e dizem-no de uma só vez. E nada mais é preciso para se fazer infinito.

O teu olhar disse tudo. Prendeu-me. Agarrou-me. E como se isso não chegasse, cravaste-me à força na memória o teu beijo. O teu corpo ainda frágil do frio e do medo. O relógio a passar e a pôr peso nos ombros. O caos. A razão e a emoção a chocarem e a implodirem. E no fim, o silêncio dos destroços. O último olhar ao fechar do elevador.

E o teu olhar que foi quanto bastou. Que disse tudo, de uma só vez. O teu beijo que me cravou a memória para nunca mais esquecer. Um dia hei-de ficar e repetir infinitas vezes o infinito até que o relógio pare.