Acordar

Abro a janela, sinto o frio, sinto a vida. Acendo um cigarro que é só mais um cigarro. Sem pensamentos que venham com ele e fujam com o expirar lento do fumo que se confunde com o vapor do frio. A cidade cai adormecida, embalada pela trémula luz laranja dos seus caminhos. A Sara dorme também, e não parece tão frágil assim. Não parece estar a pensar em algo que mais que não aquilo que parece fazer tão bem e que eu, por herança familiar, é raro conseguir. Mas a Sara está ali deitada e não está noutro lugar, como costuma estar. Sempre a pensar em algo mais, sempre a duvidar até das suas próprias dúvidas. A Sara está ali deitada, na minha cama que eu raramente uso, e está mesmo ali. Não está noutro sítio.

A Sara, por qualquer enviusamento da memória, faz-me lembrar a minha professora primária. Mais nova, muito mais nova e muito mais bonita. Mas com o mesmo olhar de quem pode ensinar tudo, com a mesma paciência e dedicação de quem ensina uma criança de cinco anos a ler e a escrever, e que um mais um são dois e que o primeiro rei de Portugal foi o D. Afonso Henriques. A Sara que sorri muito e nem sempre com vontade – e que até a dormir parece sorrir – ensinou-me desde cedo uma coisa: que a um dia segue-se sempre outro. O que eu ainda tentei discutir, sem realmente perceber. Disse-lhe que ao dia em que morremos não se segue mais nenhum dia. A Sara sorriu, naquele sorriso enorme, e disse “não há regra sem excepção”. Como na escola primária, um mais um são dois, sempre dois, sempre. E não há argumentos. A um dia segue-se outro, sempre outro, sempre.

Com a ponta do cigarro acendi outro, com o corpo já a tremer do frio. Com a mão desembaciei um pequeno círculo no vidro. Por entre as gotas de água que escorriam pelo vidro, como pequenos cristais vivos e coloridos pelas luzes da cidade – e não eram mais que o resultado da condensação -, deixei-me ficar a ver a Sara a dormir, porque era o único momento em que podia estar com ela, só com ela. Porque num qualquer outro momento em que não estivesse ali deitada, na minha cama que nunca usava, estaria sempre noutro lado que não comigo.

Apaguei o cigarro, porque o frio era demais. Deitei-me ao lado dela e, pela primeira vez, adormeci sem que ela acordasse primeiro. É que a Sara tinha o acordar mais bonito que alguma vez vira. Todas as pessoas são feias quando acordam, a Sara não. Tem os olhos de ternura mais ternurentos que alguma vez vi, quando acorda. A Sara acorda a sorrir.

A Sara, no único dia em que acordou e viu que eu adormecera, partiu. Tal como a minha professora primária no último dia de escola, deixou-me um bilhete que dizia “não te esqueças do que te ensinei”. A um dia segue-se sempre outro, sempre. Sempre outro dia. Mas, a partir desse dia, todos os dias pareceram o mesmo. A Sara estava errada.

Isabel

De histórias de amor percebo pouco ou nada. Nunca foi o meu forte. Quanto mais conheço, mais tenho a sensação de que é um mundo em que não vale a pena entrar. Não por fobia, ou dúvida ou qualquer outro motivo tão irracional quanto o medo. Acho que a sucessão de experiências me levou a dispensar a loucura de algo mais que o biológico roçar de corpos. O amor não é mais que isso, uma reacção química para disfarçar a necessidade de toque, de presença. A mim chega o som da televisão que ligo sempre que chego a casa, e que nunca vejo. A mim chegam as mulheres que consigo seduzir, e a quem explico cuidadosamente que não posso oferecer mais do que o meu corpo.

Aceitam sempre, pelo menos no momento, aceitam sempre. Depois desaparecem revoltadas, raivosas como se não tivessem na realidade aceite o corpo que as satisfez. Como se não padecessem da mesma necessidade que eu, como se os seus corpos não lhes pedissem o mesmo que o meu. Quando acordo já lá não estão, o que até agradeço. De manhã sou rabugento, e em casa prefiro a televisão a uma mulher.

A Isabel foi diferente, recusou-me o corpo. Assim me puxou para ela. Olhos redondos, grandes. Seios perfeitos, do tamanho da mão. A alvura da pele a contrastar com o colorido das roupas. A Isabel sorria enquanto me falava de amor. Por educação deixei-a acabar. Como a todas as outras expliquei os meus termos. Que era só o corpo e nada mais. Que se quisesse podia ir embora. Sem dúvida, uma conversa demasiado séria para duas pessoas terem deitadas numa cama, com a pouca roupa que ainda têm vestida a pedir para sair.

Porque o corpo suplicava, e não a cabeça (nunca a cabeça), pedi-lhe que ficasse, que fosse embora só de manhã. Com os olhos maiores do que nunca disse-me que ficava, mas que não me dava o corpo. Disse que dormia ao meu lado, que me iria fazer o pequeno-almoço.

– De manhã, só bebo café. por favor não fiques.

– Será o melhor café que já bebeste.

Com isto, abriu o armário, mexeu nas minhas coisas – o que eu procurei ignorar – e escolheu uma camisa minha para se tapar. Talvez para me obrigar a não pensar no seu corpo com o qual continuei a imaginar. Desligou a televisão, que eu voltei a ligar logo depois. Voltou a desligar e eu voltei a ligar, repetição que se repetiu até concordarmos em que ficaria ligada sem som. Disse-me boa noite, sem beijo, e adormeceu, como se toda a vida tivesse dormido ao meu lado. Depois de muitas voltas lá consegui adormecer também, o corpo pedia-me aquilo que a Isabel não me iria dar.

O café, reconheci a contra-gosto, estava bom. Ainda assim, durante as duas primeiras horas nada disse, sentei-me em frente à televisão, bebi o café que realmente estava óptimo e fumei vários cigarros, sem ter ainda lucidez para os contar. Nesse tempo, a Isabel arrumou a casa que estava organizadamente desarrumada. Nunca tive empregada pela violação de privacidade que implica ter alguém a arrumar as minhas coisas. Tenho muitas insónias e as limpezas dão-me sono. Mando lavar e engomar a minha roupa fora, longe de casa. Não gosto que mexam nas minhas coisas, e ao contrário da camisa, desta vez não consegui ignorar. Levantei-me, atravessei o corredor em passo acelerado, pesado, que a Isabel não ouviu por estar a cantar enquanto limpava o pó de uma estante carregada de livros que eu cuidadosamente desarrumara. Entrei no quarto, hesitei.

– Porque fazes isto? – explodi revoltado, raivoso.

– Porque gosto de ti.

Assim, a Isabel, que me recusou o corpo, destruiu-me a Razão.

A culpa é da falta de tempo...