Ela não poderia nunca perceber aquelas lágrimas. Há coisas que são indizíveis, e outras que não se podem dizer. Ele não lhe poderia nunca explicar que as lágrimas eram apenas o resultado de uma complexa mistura de sentimentos. Mas talvez o que mais o assustava não fosse a despedida pesada, soturna, a incerteza dos minutos seguintes. As despedidas matam sem sequer matar, e quando ele se apercebeu disso pensou que talvez fosse melhor morrer, que talvez doesse menos.

Ela não poderia nunca perceber as lágrimas que caiam da sua cara, ele tampouco poderia explicar. Não lhe poderia dizer que chorava por, uma vez mais, não poder adiar o sonho de ficar. Porque para isso teria que dizer que queria ficar para sempre. Com ela. Porque para isso teria que explicar que a num determinado momento na vida se conhece outra pessoa e que, nesse preciso instante, se sabe que se vai ficar com aquela pessoa para sempre, um dia de cada vez. E ela era essa pessoa.

Porque há duas palavras com efeitos estranhos. Sempre. Nunca. E nunca lhe poderia dizer que queria ficar com ela para sempre. Porque para sempre assusta. Que ter que partir mais uma vez lhe doía como nada. Só conseguia pensar em ficar.

Ela tinha o dom de lhe roubar as palavras, como se fosse mesmo possível roubar as palavras a alguém. Mas ela conseguia. E fazia-o com um sorriso tão natural que ninguém acreditaria que pudesse de facto roubar. E ele sorria, envergonhado, por não ter palavras para dizer. Então ela, já sem sorriso, mas com olhos de desejo, pedia-lhe para fazerem amor. Ele sem palavras, beijava-a como se dissesse sim. E então, o mundo eram eles. Ele amava-a muito, ela ainda não tinha a certeza, mas ia dizendo que sim (em certos momentos as dúvidas pareciam não existir). Eram felizes, muito felizes, até um dia.

Um dia quase a perdeu, e ainda hoje tem medo que isso volte a acontecer.


ya

Parece-me óbvio que, por vezes, sejam necessárias certas decisões sem qualquer carga lógica. Quase sempre é preciso dar um passo atrás para dar dois em frente. Ou algo do género. Os clichés resultam sempre tão bem quando é hora de acalmar a alma. E o mais estúpido é ainda sentirmos necessidade de nos mentir. De nos enganar-mos a nós próprios. O recalcamento pode ser um processo extremamente doloroso.

Inevitavelmente acabamos todos por tentar arranjar defesas, para a perspectiva de todos, mas todos, morrermos sozinhos. Podem dar-nos a mão, mas chegado o momento vamos sozinhos. E ainda bem. Porque afinal nada poderia jamais ser igual. Mas continuamos a acreditar e a iludir-nos, porque precisamos dessa mentira, dessa ilusão para continuar. Porque a ideia de um amor para sempre, da felicidade eterna é confortável. Porque senão não vale a pena continuar, senão morremos.

Mas chega a hora e todos acabamos por recusar o que procuramos – e procuramos todos o mesmo -, o amor, a felicidade. E voltamos ao início, sozinhos, como na hora da morte. Como em todas as horas em que precisamos de sentir o toque de alguém. As palavras são merda, porque os actos nunca correspondem. Bicho estúpido e contraditório o Homem, que se mata e se vive no mesmo momento. Que precisa de se matar uma e outra vez para se cumprir a inevitável cruz da vida.


Para a #1

Desta vez não apaguei todos os teus vestígios. Desta vez não. É o fim. E de certeza que esta é apenas aquela fase a que psicólogos, psiquiatras e outros que tais chamam negação. Eu só quero adiar um pouco mais o regresso a mim mesmo. Porque eventualmente o tempo ensina-nos que estamos bem sozinhos, mostra-nos que afinal não precisamos daquela pessoa a quem jurámos sem ela não sabermos viver. O tempo é o velho cliché. A vida dobra-nos, molda-nos e mostra-nos que o amanhã é só mais um dia. As tuas fotografias continuam na parede, a matar os últimos resquícios de memória. Mas também elas, como todas as outras recordações, materiais e imateriais, acabarão arquivadas num sítio qualquer só identificado pela etiqueta com o teu nome.

Desta vez ainda não apaguei todos os teus vestígios. Desta vez não. É o fim, e como em qualquer outro fim, a história acaba assim: as fotografias na parede, as recordações a baloiçar no pensamento. Mas a vida não pára, e amanhã é só mais um dia. Não te vou esquecer, não. Não te vou esquecer. Simplesmente, não me vou lembrar.

Talvez de uma forma ou de outra tudo seja igual. A cabeça é um problema, e o amor é mesmo fodido. Não sei, talvez tenha que ser assim. A fantasia sempre melhor que a realidade. Os sonhos sempre arruinados pelo acordar. O relógio que não pára e ainda bem. A noite e o dia a repetirem-se com a exactidão de uma cópia.

E, no fim, sempre a angústia, a ansiedade, a desilusão. As expectativas nunca partilhadas. E a invisibilidade que mata. E precisar, só preciso de mim e do mundo. Mas não resisto à ilusão, sempre a mesma. A cabeça é um problema, e o amor é mesmo fodido. A consciência do fim que tudo tem. Espero que o próximo seja o meu. Penso. Arrependo-me. Porque o desejo não é de morte, é de desaparecimento. É o desejo de pensar que alguém pode sentir a minha falta. O desejo de pensar que tenho algo que só eu posso dar.

Não sei. O tempo – que não faz tic-tac, mas um tic-tic ou tac-tac, bem menos rítmico – insiste em passar. E o problema é esse. Nada muda e o tempo continua a passar. Uma cópia repetida de tudo aquilo que já passou e de que fujo. O passado é pior que o amor, muito pior. A cabeça não pára. A cabeça é um problema.

Agradecimento

Obrigado a todos aqueles que continuam a visitar este blog, e a comentar e a elogiar. O tempo tem sido escasso, e tenho tentado dedicar-me totalmente a um velho objectivo: cem páginas. Juntamente com todas as outras obrigações, o tempo disponível para o blog é verdadeiramente pouco. Tentarei ser um pouco mais assíduo nos próximos tempos. Porque talvez seja essa a melhor forma de agradecer a vossa fidelidade para com a minha escrita.

Muito obrigado.


Até já.

A campainha tocou. Odeio que me acordem de manhã, e àquela hora era demasiado de manhã. Podia matar-te, não trouxesses na mão o sorriso que sabes ser o meu preferido. Acompanhei-te à sala, pedi-te uns minutos, ainda com o cérebro demasiado ensopado em sono. Café. Banho. Talvez o banho primeiro. Tu riste-te, pegaste-me na mão e arrastaste-me para o quarto. Disseste-me que estavas ali para dormir comigo, com os meus braços a envolver o teu corpo. Tiraste a roupa, deitaste-te ao meu lado. Senti o teu calor, uma súbita harmonia a envolver-me os sentidos. Adormeci. Adormecemos.

Acordei e não estavas lá.

Violino

O nosso amor é um violino. São as notas graves, sustidas. As mesmas notas suspensas à loucura. Um adágio em ritmo de allegro. O teu corpo que se revela entre os lençóis, entre cada uma das notas. É o ritmo da loucura, do violino que grita para lá da razão. Sem expectativas, sem esperanças que o teu corpo me seja devolvido, um dia, um minuto. Recordo a tua gargalhada, as tuas brincadeiras. A forma como tentavas escapar de um beijo, só para provocar.

Estranho bebermos dos lábios um do outro o amor que nunca tivemos. Somos mil histórias inacabadas que ainda não é desta que parecem terminar. A nossa história são histórias cruzadas, entrelaçadas, abraçadas. Somos um olhar nunca antes olhado. Palavras desconectadas, rabiscadas numa folha. Somos a incerteza de um sentimento estranho que parece procurar sustento, como se tudo estivesse a acontecer pela primeira vez, tragicamente pela primeira vez. Como se tudo fosse apenas o mundo à espera de ser descoberto.

Mas não, somos aquela nota do violino sustida para lá da loucura, para lá do momento. Somos o quebrar das regras do ritmo e da musicalidade, tão cientificamente estudadas. Nós não sabemos o que somos. Como se o momento nos aniquilasse. Não sou eu, nem és tu. Somos nós, só nós e só nós é que importamos. Bebemos dos lábios um do outro o amor que não temos, somos o hoje e o amanhã e mais certezas não podemos ter. somos o conforto desconfortável de não sabermos quem somos.

O nosso amor é um violino, e são as mãos que cruzamos, e a descoberta de quem somos um no outro. Somos nós, só nós, e enquanto isso o violino continua.

Os teus beijos sabem a sonho. Nem a mais nem a menos que a sonho, porque apenas em sonho os tenho. A tua ausência dói, uns dias mais que outros, especialmente hoje. Porque os sonhos já não chegam, porque os lábios suspiram por um beijo que se adia e parece nunca chegar. Mas pior é o corpo que não se deixa enganar e embarca num desejo que necessita execução. A cabeça é uma dependente, vai atrás.

A tua sensualidade devasta, desbasta. O teu corpo ensurdece, e os beijos somam-se, multiplicam-se, ecoam. A roupa cai entre suspiros exasperados, os corpos desejam-se mais e mais. A cabeça é uma dependente, vai atrás, a cabeça já não faz o que tem a fazer e ainda bem. Os corpos sabem, só eles sabem. E quando se unem, o meu corpo ao teu corpo, tudo faz sentido. A cabeça entende e não interfere, deixa-se ir. A cabeça é uma dependente.

A dor e o prazer confundem-se terrivelmente, por momentos pensei que nos estivéssemos a matar. Por momentos pensei que nos estivéssemos a amar. Assim ficámos, os corpos a fazer o que sabem fazer, a cabeça a ir atrás, quase sem pensar. Beijámo-nos, tocámo-nos, trocámo-nos. Os lábios a beijar o beijo há muito adiado, os corpos a saciarem-se um no outro. A respiração pesada, obstinada. Uma guerra que se trava, entre movimentos perpétuos de mãos e ancas que se tocam.

O silêncio. O meu corpo que cai para o lado, exausto, e o teu que se deixa ficar. O silêncio. O acordar. Os teus beijos que sabem a sonho, e a cabeça que aproveita o cansaço e, pela primeira vez, percebe o que é o amor. A tua ausência que dói. E este sonho que parece nunca acordar em ti.

Voz

Sempre vi a música como um acessório. Não me lembro de ouvir música, ponto. É sempre enquanto leio, enquanto escrevo, enquanto me deito na cama e fico a olhar para o tecto à espera que as pequenas manchas de humidade comecem a formar desenhos. Não me lembro de ouvir música, apenas ouvir. Como nos filmes, a música é apenas um acessório, algo que embala a vida, que marca o ritmo.

A Teresa, que canta adoravelmente, não foi excepção. Foi um acessório, daqueles que durante o tempo que dura o encanto abrilhantam a vida, até se tornarem banais. Vi-a pela primeira vez a cantar num bar. Cantava em francês, o que já não é habitual, e só me prendeu a atenção por esse factor. Passei o tempo em que ela esteve a cantar a tentar encaixar as palavras nos pequenos fósseis que me restam das aulas de francês do ciclo. A sonoridade dos pês e dos rês pronunciados da maneira que só os franceses sabem, encantou-me. A música nem a ouvi, não me lembro de a ouvir. Habituámo-nos demasiado ao inglês. A globalização tem destas coisas, impinge-nos o inglês e trouxe-me a Teresa.

Nasceu na Argentina, o pai – que ela visita todos os domingos – é português, a mãe era checoslovaca (quando ela nasceu ainda se chamava assim e foi ficando). Com cinco anos foi viver para França. Uma confusão demasiado confusa que, com toda a certeza, daria uma fantástica biografia. Não é todos os dias que um português e uma checoslovaca se encontram na Argentina e se apaixonam. Aliás, nunca soube pronunciar o apelido materno da Teresa da forma correcta, demasiadas vogais juntas. Felizmente o pai era português e tinha um apelido fácil de pronunciar: Lopes.

Quando acabou de cantar, desceu do palco. Misturou-se com o público. Esperei que acabassem os aplausos, que lhe oferecessem as flores. Esperei que os amigos (porque há sempre amigos no público) lhe dessem os parabéns, e pedi-lhe um autógrafo. Perguntei-lhe onde podia comprar o disco e ela disse-me que ainda não havia. Convidou-me para beber um copo, o que me poupou trabalho. Há sempre medo de ouvirmos um não quando convidamos alguém estranho.

Uma semana depois estava a viver comigo, o que eu tolerei. Tinha por hábito cantar incessantemente enquanto estava em casa, o que me poupava o trabalho de pôr um disco logo pela manhã. Gostava de a ouvir cantar pelos corredores. Passeávamos ao fim da tarde, durante o dia eu fazia o que tinha a fazer, ela cantava. De vez em quando víamos um filme. Pouco mais coincidia nas nossas vidas que o facto de habitarmos o mesmo espaço, partilharmos a mesma cama. Ela gostava de cantar, eu gostava de ouvir, era o que nos unia.

Um dia ela lançou um disco. Eu, que nunca cheguei a cansar-me de a ouvir cantar, fui assistir a mais um concerto. O bar era o mesmo em que conhecia a Teresa, mas tudo mudara entretanto. Gradualmente, o bar enchera-se de gente. Em cada concerto, às caras habituais juntavam-se caras novas.

Quando o concerto acabou, fui o primeiro a cumprimentá-la (porque há sempre amigos no público), o primeiro a comprar o disco e a pedir-lhe um autógrafo, que ela não me tinha chegado a dar. Prometi a mim mesmo que havia de o ouvir sempre ao acordar. Sempre. Ofereci-lhe uma flor, encostei a minha cabeça à dela e, segurando o disco como uma promessa, disse-lhe ao ouvido “É a última noite que passamos juntos, já tenho a tua voz”.

Lado a Lado

Gostavam de passear. Não davam as mãos, nem os braços, nem se abraçavam. Caminhavam lado a lado e isso era tudo. Umas vezes falavam, outras não. Ela do lado de dentro, sempre do lado de dentro do passeio. Ela nunca se apercebeu sequer disso. Se no início ele a encaminhava para esse lado, ela acabou por o fazer inconscientemente.

Caminhavam lado a lado sem direcção. Iam fazendo o caminho ao caminhar. Ela escolhia. Escolhia se viravam à esquerda ou à direita, ele ia atrás, sempre do lado de fora, sempre do lado da estrada. Ele não gostava de tomar decisões, também não achava isso assim tão importante quando estava com ela. Queria estar com ela, apenas.

Um dia sob um sol cansativo, quente e cru, ela apercebeu-se. O tempo, para ele, parou. Ela perguntou porque é que sempre que andavam juntos ele a fazia ficar do lado de dentro do passeio. Ele soçobrou, sempre tivera esperança que ela nunca chegasse a perceber. Engoliu em seco, enfrentou a realidade. Foi sincero: “Porque assim, se algum acidente houver, é a mim que acontece, assim posso proteger-te”. Ela sorriu. Ela corou.

Os seus encontros seguiam um estranho ritual, eram uma celebração daquilo para que não conseguiam encontrar palavras. Deitavam-se, lado a lado, muito juntos, muito abraçados. Trocavam beijos ocasionais enquanto mudavam de assunto, como quem muda de disco e, naqueles segundos de silêncio, mal pode esperar pelo que vem a seguir. Até o sono se tornar incontrolável, falavam. De tudo, dos fantasmas do passado e do presente, dos medos, dos sonhos e desilusões. Falavam de coscuvilhices e de assuntos sem assunto. Mas, acima de tudo, conheciam-se. Devoravam-se mutuamente como se nunca se tivessem conhecido nos anos em que se conheceram. Até que adormeciam, lado a lado, muito juntos, muito abraçados. Como se desde sempre dormissem assim. Com uma naturalidade que o facto de apenas se estarem a descobrir não parecia possibilitar.

Ele acordava primeiro, sempre primeiro que ela, adormecia sempre depois. Deixava-se ficar, com o braço em volta do corpo dela, sentindo-a ali. Certificando-se que não era apenas um sonho. Até ser hora de a poder acordar. Como uma criança que no Natal aguarda ansiosamente as prendas que sabe que a esperam. Então, mal ela acordava, enchia-a de carinhos de beijos, até o desejo tomar conta dos corpos. Então, com as bocas encostadas, trocavam carícias que só eles sabem quais. Ele, sentindo o corpo dela, tremia de desejo. Dava-lhe o prazer que para ele era prazer também. E beijavam-se ainda mais. Muito juntos, muito abraçados. Até que ela dizia “pára” e ele parava. Riam-se muito, felizes. Ela, ainda sob o efeito do prazer que acabara de ter, espreguiça-se, contorce-se, fá-lo rir. Ele, ainda perdido, nas palermices dela, lembra-se que um dia destes tem que lhe dizer que nunca fez amor assim com ninguém.

Acordar

Abro a janela, sinto o frio, sinto a vida. Acendo um cigarro que é só mais um cigarro. Sem pensamentos que venham com ele e fujam com o expirar lento do fumo que se confunde com o vapor do frio. A cidade cai adormecida, embalada pela trémula luz laranja dos seus caminhos. A Sara dorme também, e não parece tão frágil assim. Não parece estar a pensar em algo que mais que não aquilo que parece fazer tão bem e que eu, por herança familiar, é raro conseguir. Mas a Sara está ali deitada e não está noutro lugar, como costuma estar. Sempre a pensar em algo mais, sempre a duvidar até das suas próprias dúvidas. A Sara está ali deitada, na minha cama que eu raramente uso, e está mesmo ali. Não está noutro sítio.

A Sara, por qualquer enviusamento da memória, faz-me lembrar a minha professora primária. Mais nova, muito mais nova e muito mais bonita. Mas com o mesmo olhar de quem pode ensinar tudo, com a mesma paciência e dedicação de quem ensina uma criança de cinco anos a ler e a escrever, e que um mais um são dois e que o primeiro rei de Portugal foi o D. Afonso Henriques. A Sara que sorri muito e nem sempre com vontade – e que até a dormir parece sorrir – ensinou-me desde cedo uma coisa: que a um dia segue-se sempre outro. O que eu ainda tentei discutir, sem realmente perceber. Disse-lhe que ao dia em que morremos não se segue mais nenhum dia. A Sara sorriu, naquele sorriso enorme, e disse “não há regra sem excepção”. Como na escola primária, um mais um são dois, sempre dois, sempre. E não há argumentos. A um dia segue-se outro, sempre outro, sempre.

Com a ponta do cigarro acendi outro, com o corpo já a tremer do frio. Com a mão desembaciei um pequeno círculo no vidro. Por entre as gotas de água que escorriam pelo vidro, como pequenos cristais vivos e coloridos pelas luzes da cidade – e não eram mais que o resultado da condensação -, deixei-me ficar a ver a Sara a dormir, porque era o único momento em que podia estar com ela, só com ela. Porque num qualquer outro momento em que não estivesse ali deitada, na minha cama que nunca usava, estaria sempre noutro lado que não comigo.

Apaguei o cigarro, porque o frio era demais. Deitei-me ao lado dela e, pela primeira vez, adormeci sem que ela acordasse primeiro. É que a Sara tinha o acordar mais bonito que alguma vez vira. Todas as pessoas são feias quando acordam, a Sara não. Tem os olhos de ternura mais ternurentos que alguma vez vi, quando acorda. A Sara acorda a sorrir.

A Sara, no único dia em que acordou e viu que eu adormecera, partiu. Tal como a minha professora primária no último dia de escola, deixou-me um bilhete que dizia “não te esqueças do que te ensinei”. A um dia segue-se sempre outro, sempre. Sempre outro dia. Mas, a partir desse dia, todos os dias pareceram o mesmo. A Sara estava errada.

Isabel

De histórias de amor percebo pouco ou nada. Nunca foi o meu forte. Quanto mais conheço, mais tenho a sensação de que é um mundo em que não vale a pena entrar. Não por fobia, ou dúvida ou qualquer outro motivo tão irracional quanto o medo. Acho que a sucessão de experiências me levou a dispensar a loucura de algo mais que o biológico roçar de corpos. O amor não é mais que isso, uma reacção química para disfarçar a necessidade de toque, de presença. A mim chega o som da televisão que ligo sempre que chego a casa, e que nunca vejo. A mim chegam as mulheres que consigo seduzir, e a quem explico cuidadosamente que não posso oferecer mais do que o meu corpo.

Aceitam sempre, pelo menos no momento, aceitam sempre. Depois desaparecem revoltadas, raivosas como se não tivessem na realidade aceite o corpo que as satisfez. Como se não padecessem da mesma necessidade que eu, como se os seus corpos não lhes pedissem o mesmo que o meu. Quando acordo já lá não estão, o que até agradeço. De manhã sou rabugento, e em casa prefiro a televisão a uma mulher.

A Isabel foi diferente, recusou-me o corpo. Assim me puxou para ela. Olhos redondos, grandes. Seios perfeitos, do tamanho da mão. A alvura da pele a contrastar com o colorido das roupas. A Isabel sorria enquanto me falava de amor. Por educação deixei-a acabar. Como a todas as outras expliquei os meus termos. Que era só o corpo e nada mais. Que se quisesse podia ir embora. Sem dúvida, uma conversa demasiado séria para duas pessoas terem deitadas numa cama, com a pouca roupa que ainda têm vestida a pedir para sair.

Porque o corpo suplicava, e não a cabeça (nunca a cabeça), pedi-lhe que ficasse, que fosse embora só de manhã. Com os olhos maiores do que nunca disse-me que ficava, mas que não me dava o corpo. Disse que dormia ao meu lado, que me iria fazer o pequeno-almoço.

– De manhã, só bebo café. por favor não fiques.

– Será o melhor café que já bebeste.

Com isto, abriu o armário, mexeu nas minhas coisas – o que eu procurei ignorar – e escolheu uma camisa minha para se tapar. Talvez para me obrigar a não pensar no seu corpo com o qual continuei a imaginar. Desligou a televisão, que eu voltei a ligar logo depois. Voltou a desligar e eu voltei a ligar, repetição que se repetiu até concordarmos em que ficaria ligada sem som. Disse-me boa noite, sem beijo, e adormeceu, como se toda a vida tivesse dormido ao meu lado. Depois de muitas voltas lá consegui adormecer também, o corpo pedia-me aquilo que a Isabel não me iria dar.

O café, reconheci a contra-gosto, estava bom. Ainda assim, durante as duas primeiras horas nada disse, sentei-me em frente à televisão, bebi o café que realmente estava óptimo e fumei vários cigarros, sem ter ainda lucidez para os contar. Nesse tempo, a Isabel arrumou a casa que estava organizadamente desarrumada. Nunca tive empregada pela violação de privacidade que implica ter alguém a arrumar as minhas coisas. Tenho muitas insónias e as limpezas dão-me sono. Mando lavar e engomar a minha roupa fora, longe de casa. Não gosto que mexam nas minhas coisas, e ao contrário da camisa, desta vez não consegui ignorar. Levantei-me, atravessei o corredor em passo acelerado, pesado, que a Isabel não ouviu por estar a cantar enquanto limpava o pó de uma estante carregada de livros que eu cuidadosamente desarrumara. Entrei no quarto, hesitei.

– Porque fazes isto? – explodi revoltado, raivoso.

– Porque gosto de ti.

Assim, a Isabel, que me recusou o corpo, destruiu-me a Razão.

A culpa é da falta de tempo...