#1

Numas escadas de Paris, ou noutra qualquer rua que o êxtase não permitiu identificar. Foram cigarros atrás de cigarros, como se o mundo estivesse para acabar e tudo o que ainda houvesse fossem cigarros e cinzeiros a transbordar. Como se só o sonho da tua mão sobre a minha me fizesse adormecer. Como se o toque do teu sorriso sobre o meu corpo me sustentasse. Pedi-te só mais um pouco e tu disseste que não que Paris não podia esperar por ti. Acabaste por ficar e nem precisaste de muito tempo para que a despedida e um pronuncio de saudade me consumisse. Então convidaste-me a ir contigo e renasci esperançado.

Durante uma semana, vimos museus e exposições de arte, que eu não compreendia. Mas que tu, pacientemente, me explicavas quase quadro a quadro. Esqueci a saudade, a despedida antecipada. Numas escadas de Paris, trocámos segredos cúmplices. Olhos azuis envoltos em cabelos longos e um sorriso de menina a encher todo o rosto. Paris foi a minha morte, porque eventualmente acabaram os museus, as exposições e as ruas todas calcadas a passo rápido de quem não deveria ter pressa. Paris foi a minha morte.

Eventualmente, reconheci um quadro que me desiludiu, e que tu não me quiseste explicar. Disseste-me que era hora de eu partir, que tinhas que conquistar Paris sozinha. Deixaste-me no aeroporto para apanhar o primeiro voo de volta a casa, que apenas partia no dia seguinte. Despediste-te fugazmente como quem tem o mundo à espera de ser conquistado. Partiste no teu passo seguro que arrasta olhares. Naquela última noite, perdi-me numas escadas de Paris, ou noutra qualquer rua que a morte não permitiu identificar. Foram cigarros atrás de cigarros, cinzeiros a transbordar. Foi um quadro incompreensível que nunca ninguém soube explicar.

P = 0

Reuniu todos os dados, pegou na calculadora e, durante dias, rodeou-se de números e contas e equações. Adorava matemática, em especial o cálculo de probabilidades. Dizia que era o mais próximo que se podia chegar da prestidigitação. Cálculo após cálculo. Correlou teorias, variáveis. Zero. P sempre igual a zero. P = 0. P = Nunca. Os números não mentem, não enganam, nem tampouco conhecem a ironia. Nada houve a fazer. A Matemática nunca erra. A Matemática traçou, com precisão científica, o nosso destino. Nunca. Sem argumentação possível.

Então, porque para ela os números eram tudo, entregou-se a eles, deixou que os cálculos precisos e exactos orientassem a sua vida. Respondia com percentagens às propostas que lhe apresentavam. Nunca dizia sim ou não, respondia em probabilidades. E a nós zero. Sempre zero. Então pedi-te que recalculasses, que juntasses as variáveis da emoção. Acrescentei: o mundo é feito de impossibilidades. Tu sorriste e lançaste-te sobre a calculadora que não mentia. Adicionaste as variáveis a pedido. Mesmo assim P = 0 = nunca. Levantaste-te, desligaste a calculadora, disseste lamento, os números não mentem.

Atravessaste a sala, deixando para trás a mesa repleta de papéis preenchidos com fórmulas matemáticas, e duas ou três calculadoras. Vinhas na minha direcção quando te vi sorrir, acho que pela primeira vez te vi sorrir. Beijaste-me e voltaste a sorrir. Puseste de lado a calculadora e os números. Passaste a responder com uma incerta precisão que nem os números conseguem calcular. Descobriste nas artes uma aventura muito mais fascinante e passaste a acreditar na astrologia.

Sempre achei complicado perceber o que a Luísa queria realmente dizer com certas coisas. Acho que muitas dessas coisas dizia só por dizer, ou porque lhe parecia algo inteligente de ser dito. Há frases que parecem encaixar perfeitamente em certas situações, mesmo que não queiram dizer absolutamente nada. A Luísa sempre cultivou aquela postura de intelectual – tão típica dos esquerdistas – que nunca era mais do que pseudo. Contudo, essa postura garantia-lhe o acesso a certos circuitos sociais que, desde adolescente, ambicionava frequentar.

Magnetizava-se facilmente a escritores, sem que soubesse escrever mais que um recado ou um post-it. Porém, os escultores eram a sua assolapada – e assumida – paixão. São as mãos que criam, que moldam, percebes? – e eu não percebia, afinal todas as artes surgem das mãos. Mãos que escrevem, que seguram o pincel, que seguram o martelo e o escopro. Não, nunca percebi a sensualidade de bater com um martelo num escopro, que não é mais que um prego grande, e arrancar bocados de pedra. Se me falasse do traço de um desenho, das pinceladas numa tela, do ritmo de um poema, talvez conseguisse chegar a compreender. Não, não gosto de escultura.

A Luísa que se inscreveu num curso de escultura, moldou a partir de barro uma incrível variedade de cinzeiros e taças que ofereceu aos amigos como conquistas. Disfarçava a falta de jeito com óculos de massa e adjectivando a suas esculturas de naif. Pseudo no meio de pseudos, sabia mexer-se e melhor ainda jogava os seus trunfos. A Luísa não era nada, nem escultura, nem artista. Gostava de arte, e era tudo.

Mais tarde descobriu que gostava de fingir e dedicou-se ao teatro, tendo o mesmo sucesso que na escultura. Os amigos todos adoraram as peças, as de barro e as de teatro. Ela sabia disso, mas fingia que não. Ela sabia disso, e um dia não conseguiu fingir mais. Nesse mesmo dia, a Luísa telefonou e pediu-me que a fosse buscar e que a levasse para qualquer lado e que a amasse e que fugíssemos dali para fora, para longe de tudo, dos pseudo-amigos, das pseudo-artes. Às sete horas fui buscar a Luísa que tentava disfarçar que tinha passado as últimas horas a chorar. Entrou no carro, segurou-me a mão e disse por favor não digas nada. E eu não disse, limitei-me a conduzir.

A Luísa tem apenas um defeito, é tão bonita que dói. A ela, mas principalmente a mim, que me deixei arrastar para longe de tudo. Principalmente a mim quando descobri que apenas eu não fingia.

Não se afastavam mais do que um antebraço de distância. Como se os seus corpos nus os envergonhassem. Assim, bem juntos, não havia espaço para observar muito mais que os olhos, talvez o resto da face. Nada mais conseguiam ver um do outro.

Faziam amor muito juntos, ele por cima dela, sempre ele por cima dela. Cada vez que ele se tentava levantar mais um pouco ela segurava-o. Ele aceitava, sabia que cada uma dessas tentativas não era fruto de uma distracção momentânea causada pelo prazer. Ela perdoava todas essas tentativas.

Ela raramente se vinha. Nas duas ou três vezes em que se deixava levar pelo prazer mantinha o silêncio o mais que podia, que conseguia. Como se o seu corpo manifestando prazer também a envergonhasse.

Quando ele se vinha, saía de cima dela, deitava-se ao lado, de costas para ela e só mudava de posição depois de ela sair pelo outro lado da cama e a ouvia fechar-se na casa de banho. Vestia-se apenas quando ouvia o chuveiro correr. Quando ela voltava já ele dormia. Ela demorava sempre mais um pouco que o necessário para não correr o risco de ele ainda estar acordado.

Deitava-se, e deixava-se ficar um pouco acordada. Pousava um livro aberto sobre a barriga para o caso de ele acordar, e punha-se a sonhar. Com outro corpo que não o dela, com outro homem que não aquele, com um gemido de sincero prazer…

Mónica

Estes dias assim trazem-me sempre recordações da Mónica, que usava óculos e eu sempre lhe disse que era por ler demasiado. Só deixámos de nos ver porque ela me trocou por um livro de um escritor italiano que ela jurava a pés juntos ser fantástico, e que não conseguia parar de ler. A Mónica, que tinha sido criada pelos avós, tivera desde pequena uma paixão assolapada pelo seu avô. Júlio era o seu nome e tinha uma divisão da casa a que chamava biblioteca, sem que esse compartimento tivesse mais elegância que uma dispensa de livros em que o pó se acumula, e que não lera nem metade deles. Tinha uma cultura excepcional, obviamente não sabia tudo, mas sempre que era confrontado com algo novo fazia questão de investigar. Os únicos livros que leu com verdadeiro gosto foram os volumes da enciclopédia: não tinha paciência para ler histórias, e não encontrava qualquer fonte de sabedoria nisso.

A Mónica prometera a si mesma saber, pelo menos, tanto como o avô, e fazia-o da forma que o Avô Júlio nunca fizera: lendo compulsivamente livro atrás de livro. Lia de tal forma que se esquecia do mundo, e de mim também – mas não foi por isso que deixámos de nos ver. Muitas vezes estávamos na mesma sala, sempre da casa dela, com a chuva a bater nas janelas, e ela lia, lia, lia e eu via televisão, via, via. Não falávamos, porque outro problema que a Mónica tinha era perder-se facilmente na leitura. Tinha dificuldades em decorar os nomes das personagens e as relações entre elas – não só nos livros, mas em tudo -, mas insistia em ler aqueles escritores hispano-americanos demasiado confusos e entediantes. Então eu entretinha-me a ver televisão, ou a ouvir a música que a Mónica estivesse a ouvir, lia uma ou outra revistas e fotografava-a. No início ficava irritada, mas depois aprendeu a ignorar. Se maior parte das fotografias eram meros instantâneos de roupão e cabelo despenteado, ainda consegui uma meia dúzia de fotos dignas.

A certa altura, a televisão já não dava nada que prestasse, a colecção de discos dela já havia passado completa pelo menos três vezes, as revistas nada traziam de novo, e as fotografias, essas, não podem evoluir muito se a modelo insiste em ficar estática, deitada no sofá de roupão (ou roupa interior no Verão). Um dia levei um amigo, abrimos uma garrafa de whisky e embebedamo-nos terrivelmente. A Mónica continuou a ler. Levei uma amiga com quem fingi intimidade e ainda outra com quem tive intimidade. Ao fim de quatro ou cinco beijos a Mónica mudou a página e fingiu que não olhou, mas continuou a ler, não tinha tempo a perder se queria cumprir a promessa.

Um dia, quando me despedi do último convidado de uma festa que havia organizado em casa dela, ela pousou o livro que entretanto havia acabado, levantou-se do sofá e abraçou-me pela primeira vez. Amámo-nos no mesmo sofá em que ela lia e eu a fotografava. Acendi um cigarro e ela disse-me que talvez fosse melhor não nos vermos mais, como antes mo havia dito várias vezes. Vesti-me, fui para me despedir, mas já tinha começado a ler um qualquer outro livro. Fui embora. No dia seguinte telefonei-lhe, como sempre fazia de cada vez que a Mónica me dizia que não me queria ver mais, e desta vez atendeu: disse que não podia falar, que estava a ler um livro de um escritor italiano que jurava ser fantástico, e que não conseguia parar de ler. Não voltei a tentar. Trouxe comigo as fotografias, sem que alguma vez tenha revelado os rolos.

Luna Azul

A Dona Isabel, que insiste em ser tratada apenas por Isabel, intrigou-me logo no primeiro contacto sem que conseguisse perceber porquê. A Dona Isabel, que não consigo tratar apenas por Isabel, conquistou o meu respeito ao contra-argumentar as minhas rápidas impressões sobre aquela cidade estranha. Revelou-se uma encantadora e humilde conversadora. Disse-lhe que encontrara bastante desenvolvimento na cidade desde a minha última visita. Contestou: “Acha?”, com uma cortesia quase desarmante. Argumentei, ela contra-argumentou e sugeriu o café com laranja. Acabei por optar pelo café cigano que alguém me havia sugerido. Eventualmente, acabei por perceber que a Dona Isabel, melhor que ninguém, conhecia os seus cafés. As suas sugestões revelaram-se deliciosas combinações de café, algumas tão simples como um fantástico mazagrã. Ao longo dos dias, deixei-me perfumar com os aromas do café e do chocolate, todos feitos pela própria.

A Dona Isabel, uma Mulher assim não pode ser só Isabel, fugiu ao Destino. É, provavelmente, a única pessoa que conheço que de facto o conseguiu. Ainda que no caso dela seja incerto se foi uma conquista ou uma rendição. Passa os dias numa das duas salas, da estufa, a que chama escritório. A outra está cheia de plantas que ela cria. É este o mundo dela. É este o mundo que ela escolheu para recomeçar a vida. É entre café, chocolate, flores e dois dedos de conversa com os clientes, nunca mais que isso para não incomodar a privacidade de cada um.

A Dona Isabel, jamais Isabel, correu o mundo, conheceu o longe e o perto. De todos os sabores escolheu o café e o chocolate. O doce e o amargo. Aprendeu a escolhê-lo, a combinar os diferentes lotes. Hoje tem a sua própria mistura, alcançada após muitas experiências e estudo também. Aprendeu a transformar o cacau em chocolate e fá-lo divinalmente. No meio disto tudo ainda tem tempo para pintar, para criar as suas plantas e fazer arranjos florais que quase falam. E ela podia ser tudo, podia mandar naquele país, podia escrever a sua vida, vendê-la e ficar rica, podia ser excêntrica. Mas não. A Dona Isabel escolheu viver para ela. Deixou a política, o mundo, e dedicou-se a si mesma. Agora é feliz. Verdadeiramente feliz. Descobriu-se a si mesma e entre um café e uma taça de chocolate, dá duas pinceladas e cheira uma flor. Cumprimenta sempre os clientes e fala um pouco, mas não mais do que o necessário porque não se sente no direito de interromper o café de ninguém. Passa os dias no seu Luna Azul e é feliz. Podia ser tudo mas foi isto que escolheu. Fugiu ao destino: não entrou num avião em que devia ter entrado e que acabou por se despenhar.

Fecho o livro, pago a conta. Passo pelo escritório da Dona Isabel e digo até amanhã. Ela agradece, quando deveria ser eu a fazê-lo.

Gosto do café doce, o mais doce possível. Talvez porque não goste de café, como não gosto de coisas demasiado reais. Mas preciso de cafeína, mantém os sentidos despertos, exagera a dor. Bebo cinco cafés por dia, mas só nos dias em que não bebo mais. Deixei de me preocupar com a saúde no dia em que te conheci. Na verdade, deixei de me preocupar com tudo o que não estivesse de alguma forma relacionado contigo. Foi o que me valeu.

Se não tivesses sido tu, ou melhor, se não tivesse sido o facto de me perder completamente em ti, tinha-me desmoronado. Porque a culpa aqui será sempre minha, fui eu que me deixei cair em tentação, fui eu que rejeitei a realidade. Tu não chegaste a aperceber-te de nada, o que também foi bom para mim. Assim, apenas bebia café (com muito açúcar) contigo e com tudo o mais imaginário possível.

Gostava de te ter tido. Apenas para poder sentir, na pele, a dor de te perder. À qual juntaria seis, sete, ou mesmo oito cafés por dia. Não quereria perder pitada de algo capaz de me matar. Se só imaginar quase mata…

Não te tive, o que acabou também por ser dor. Mas uma dor menor, mais rápida. Não se gosta (ou não gosta) de algo que nunca se provou. Mesmo assim, tenho a certeza que iria gostar. Eu iria gostar tanto de ti que haveria de querer sempre provar um pouco mais de ti em cada dia. Descobrir o travo a algo diferente em cada momento. Esta dor não é nada. A outra sim, seria capaz de me matar. O que talvez fosse melhor. Vale-me a recordação que começa desvanecer-se com o tempo e as pessoas que quase já não me falam de ti.

Correu tudo pelo melhor. Acabo o resto do açúcar com café que trouxe de casa num termo. Digo-te: “Adeus. Até já, meu amor”. Ajeito as flores na campa. Acendo um cigarro e inicio o caminho de volta a casa.

dias que correm...

talvez possamos começar de novo...