hoje porque estava a chover fiquei em casa a ver as gotas deslizar na janela, a ouvir a chuva bater na janela. peguei na antiga máquina de escrever e ao som do bater das teclas escrevi quase sem parar para respirar:

i

como mortos, os dois corpos jaziam lado a lado naquele quarto de paredes despidas, gélidas, brancas. pureza essa apenas quebrada por uma janela que dava para um vale com um rio ao fundo que a noite não deixava ver.
o frio imperava e os corpos ressentiam-se disso. ganhavam um tom quase que anilado e o tremor dava um movimento engraçado à cena.

num dos cantos, no chão, um ramo de flores já cansadas pelo tempo. estilhaços de uma garrafa de vinho espalhados por todo o chão, marcas de uma violenta discussão. escorrendo pela parede, uma gota de sangue.
a porta de madeira que rangia ao sabor do vento dava para uma casa que um sonho desfeito se encarregara de abandonar e preservar tal qual ficou desde o último momento em que fora habitada. os quadros na parede, os sofás onde quase ainda se podia sentir o calor de quem lá se sentou. na cozinha ainda o cheiro dos cozinhados da criada negra, uma das muitas que a senhora condessa tinha.

no ar, uma viciosa mistura de bafio e perfumes que se evaporaram ao longo dos anos. na biblioteca o deslumbramento do conhecimento antigo, abandonado. livros com páginas versadas de tanto uso. tesouros rectangulares de folhas feitos, valorizados pelas palavras.

os vidros partidos permitiam que o vento gélido entrasse provocando arrepios a qualquer corajoso aventureiro que tentasse explorar a casa. as cortinas bailavam ao som do mesmo vento. o assustador sibilo que o ar fazia ao passar pelas arestas dos fracturados vidros.

no quarto ainda os corpos moribundos, agora enlaçados numa luta desesperada pela sobrevivência. unia-os a simbiose indispensável daquele momento. já moribundos beijam-se, uma espécie de despedida para a morte já há muito anunciada.

na parede do quarto escorre ainda a gota de sangue que agora atinge o chão. liberta-se então por toda a casa um choro agudo de criança, maleficamente ensurdecedor. os corpos reagem com um último reflexo no olhar, tombando de seguida mortos. o frio daquele último abrigo e o medo daquele amor ser descoberto foram intoleráveis. a demência matou-os...


ii

um jovem poeta sabendo que naquela casa estava a sua inspiração, que daquele sítio vinham as vozes que ouvia na sua cabeça, entrou no edifício pela porta da cozinha. caminhou a medo até à sala, assustado pelo que poderia encontrar. chegando à sala deparou-se com o abandono. em tom de libertação gritou: “estou aqui! devora-me!”. naqueles momentos em que esperou ouvir uma voz de volta, pesou-lhe a desilusão nos ombros, a loucura. hesitou mexer-se, desafiando a mais que óbvia razão. frustrado pela falta de resposta sentou-se num só movimento, derrotado, num dos muitos sofás esperando que a voz vinda de lado algum finalmente respondesse.

fechou os olhos e imaginou vida naquela casa. o cheiro de comida misturado com o cheiro da lareira. o cheiro das pessoas. os raios de sol a entrarem pela janela numa manhã de outono. uma jovem bonita deitada no divã junto à janela a ler shakespeare e a sonhar com um amor eterno tal romeu e julieta. o lufa-lufa das criadas a preparar o almoço e em arrumações. os ramos de flores recém-colhidas por todo o lado.

abre os olhos e os resquícios do seu sonho duram ainda alguns segundos. os suficientes para gerar a dúvida entre sonho e realidade. não tendo outro sítio para onde ir o poeta vai em busca de uma cama onde se deitar.
no primeiro quarto em que entra encontra uma grande cama, com um aspecto suficientemente quente e confortável. na parede um quadro: dois corpos nus abraçados em cima de uma cama, o olhar moribundo durante um último beijo. paredes totalmente brancas exceptuando o rasto de uma gota de sangue do tecto até ao chão. na moldura o título: «retrato do amor eterno».

incansável e apressadamente, nos meses seguintes o jovem poeta escreveu o seu primeiro e único livro com o mesmo título do quadro. quem encontrou o seu manuscrito, estrategicamente disposto por baixo do quadro, junto ao corpo suicidário do jovem poeta, ao tentar lê-lo, apenas conseguiu decifrar o título e o capítulo final, orgasmo de caligrafia cuidada do poeta.

hoje notei que lentamente estou a envelhecer. os estranhos com quem me cruzava na rua começam a desaparecer, a velha meia corcunda que todos os dias encontrava ao sair de casa com os sacos de compras, o velhote sempre com o seu fato estilo anos trinta, que sempre que via uma mulher tirava o chápeu e dizia bom dia menina, como vai? e continuava a andar, não sei para onde. nunca soube os nomes deles, eram apenas os estranhos com quem me cruzava todos os dias na rua, no autocarro, no metro, na tabacaria. estranhos que não o eram mais que alguns conhecidos. no fundo, eram parte da minha vida. faziam parte do meu dia a dia, quase que os conhecia. por muito que tentasse evitar acabava sempre ouvindo um pouco de uma conversa aqui, outro ali. ia conhecendo algo desses estranhos, que não o eram e são tanto assim.

agora que todas as caras com quem me cruzo são diferentes, ainda que igualmente familiares, penso se um dia alguém reparará que já não apanho o mesmo autocarro, já não passo pelas mesmas ruas, se a mulher bonita do autocarro notará que já lá não estou a olhar para ela e, sem ninguém saber, a fantasiar com ela, com um olá dela, um sorriso, um olhar mais cúmplice. ou se o velho que vestia roupas antigas pensou em mim antes de morrer (ouvi no café que tinha morrido), ou se algum tivesse ajudado a senhora com as compras ela tivesse vivido mais algum tempo. não o fiz. não o fiz porque aí deixavam de ser estranhos, e por muito familiares que fossem, perderiam o sentido se fossem conhecidos.

hoje porque passei o dia a falar, não consigo escrever. hoje, porque desperdicei a imaginação em palavras sem sentimentos, porque enquanto te olhava sentada na esplanada apanhando o sol de inverno soltei a imaginação. deixei que ela partisse e viajasse pelas ruas e observasse as pessoas e sentisse sentimentos novos ou sentimentos velhos de maneira diferente para que, voltando me trouxesse no sabor das palavras a magia de um novo sentimento.

queria dizer-te mil coisas que não disse, queria cantar-te nem que fosse só uma canção que nunca pude cantar, queria-te...aqui.

chegou a hora que marca o fim do meu dia, aquela em que vens em sonhos ter comigo e me dás a tua mão, eu seguro-a com força e não te quero largar nunca mais, és a vida e eu acabo por não saber viver.
porque vives num sonho, enquanto eu sonho em viver para ti.

(escrito em colaboração com o gonçalo do ver com os olhos)

shhh

atraí o silêncio para uma emboscada que não usei. antes deixei que me cobrisse que me completasse. shhhh... não fales... aprecia este momento porque momentos assim escasseiam. não estragues tudo com essas palavras que magoam a solidão. dá-me a honra desta dança, do silêncio que agora perturba. quão belo é o silêncio... quão mais belas são as coisas no silêncio...

podia dizer que te amo, que te quero ter só para mim neste mar de ausência de tudo que não se sinta, mas para quê? porquê? numa pequena luz de pensamento que se acende sei que o silêncio vale mais que tudo, que as palavras, por exemplo.

shhhh... não tentes dizer nada. abstém-te de fazer algo que não seja ouvir e dançar e sentir e o silêncio. deixa que ele se acomode, permite que o amor entre nós nasça neste canto do mundo abençoado por algo ou alguém.

agora que sentes, deixa-me beijar o teu corpo nu. abraça-me e permite que alcance a eternidade em teus braços enquanto ardemos nas chamas deste momento. deixa-nos voltar às cinzas de onde viemos para só assim podermos dançar o infinito silêncio.

tentei fechar a mão e segurar algo, a tua mão quem sabe, mas apenas o ar se opôs na resistência ténue que pode oferecer. acordei nesse momento do sonho em que vivia. da ilusão de que ainda estás aqui. desisti de me tentar convencer que nada mudou, que tudo está igual.

vou até à janela e através do meu reflexo vejo a rua, vazia, o reflexo das luzes cor-de-laranja no pavimento molhado. um cão abandonado. acendo um cigarro que aperto entre os lábios até ficar oval. tremo das mãos e não tento acalmar-me. deixo que o pânico me arraste até ficar parado, completamente imobilizado. enquanto esse orgasmo não chega e me congela o pensamento penso no que é feito de ti e sei que não sei e sei que não quero saber. num último esboço de pensamento antes do pânico percebo que apenas não quero pensar, que não quero morrer.

quase que por espasmo aperto a mão com toda a força e sinto a tua mão e sinto o teu olhar e beijo os teus lábios e levo-te de volta para a cama e fico ali contigo a olhar-te, agora calmo, agora feliz. acendo um cigarro com o anterior e acordo e tu não estás lá.

onde, quando, como. nada me importa senão porquê. porque é que sofro por ti. porque é que agora que estás a meu lado eu te quero abraçar e beijar. porque é que te quero num desejo carinhoso. porque é que sempre que penso e sinto sobre ti concluo: só te quero a ti.

sentei-me na tua varanda sobre o mar. no início apenas explorando o teu quarto por trás do vidro, sentindo a tua casa. tentando perceber-te um pouco melhor através dos teus objectos, da maneira como os espalhas pela casa. o modo como o posicionamento de cada coisa tem uma razão de ser. as fotografias na parede milimetricamente alinhadas, a secretária perfeitamente organizada e optimizada. na mesa de cabeceira o teu diário (que apesar da curiosidade não li) e um livro de poemas, o mesmo livro de que me falas sempre que falamos de livros.

ao conhecer o teu quarto percebi que não te conheço, que não és tudo aquilo que dizes que és, que não és como eu julgo que és. agora não sei se me arrependo de ter conhecido o teu espaço e percebido que não te conheço de todo. agora não sei se quero o teu beijo. hoje, ao contrário de ontem, sei que tudo vai ser diferente, sei que não sei se estou disposto a começar tudo de novo.

sentei-me na tua varanda sobre o mar. no início apenas explorando o teu quarto por trás do vidro, sentindo a tua casa. tentando perceber-te um pouco melhor através dos teus objectos, da maneira como os espalhas pela casa. o modo como o posicionamento de cada coisa tem uma razão de ser. as fotografias na parede milimetricamente alinhadas, a secretária perfeitamente organizada e optimizada. na mesa de cabeceira o teu diário (que apesar da curiosidade não li) e um livro de poemas, o mesmo livro de que me falas sempre que falamos de livros.

ao conhecer o teu quarto percebi que não te conheço, que não és tudo aquilo que dizes que és, que não és como eu julgo que és. agora não sei se me arrependo de ter conhecido o teu espaço e percebido que não te conheço de todo. agora não sei se quero o teu beijo. hoje, ao contrário de ontem, sei que tudo vai ser diferente, sei que não sei se estou disposto a começar tudo de novo.

porquê não sei, mas há coisas que me cortam a alma como uma faca. deglutinam-me por dentro. tão grandes, tão fortes, tão divinos e a mais pequena coisa mata-nos.

hoje acordei a pensar nisto mas deixei para pensar mais tarde quando me sentir forte e divino.

cruzo-me e troco olhares com tanta gente na rua todos os dias. porquê tu? porque é que te fotografei com o olhar e guardei a imagem só para mim? a toda a hora em todo o sítio esta fotografia mental que te tirei. agora, já paranóico, penso que te devo ter conhecido algures.

tento explicar a todo o custo a fixação. seja como fôr, a lógica já se perdeu e recorro à estupidez. espero que encontrando a razão te esqueça. percorro todas as memórias. percorro todo os locais onde estive e onde tu possas ter estado. não te conheço e assim não esqueço.

hoje quando já quase não me lembrava entrei no mentro e lá estavas, sentada ao pé da janela. como uma sonhadora que num túnel espera encontrar paisagem. sentei-me à tua frente com a certeza de que te iria falar. afastaste o olhar da janela e dirigiste-o a mim. apenas fui capaz de sorrir.

sentei-me na margem do rio e vi-o passar. o rio e o sonho. acendi um cigarro e deixei que a corrente levasse o fumo. inevitavelmente, pensei. no vazio e no silêncio. pensei que podia que podia usar melhor o meu tempo. podia ser útil. porém, nestes pedaões entre a solidão e o cansaço prefiro sonhar com uma vida que não a minha. ver uma pessoa passar e para ela criar todo um mundo imaginário de situações aleatórias. e porque não? se o mundo assim se torna um entretenimento e me impede de pensar noutras coisas.

não procuro a felicidade, nem o amor ou a paixão. procuro a total ausência de pensamento. nada mais.

é como se o cansaço me preenchesse por dentro. empurrando tudo o resto para um canto. o racíocinio já não existe. as frase saem soltas. sem nexo. sem ligação. não durmo há três dias. já não estou cansado. estou para além disso. estou absorvido por uma total abstînência de sentimentos. nem assim deixo de pensar. palavras soltas.

dormir. amanhã. dormir. viver. morrer. pensar. dormir. ela. amor. dormir.

preciso dormir.

hoje senti-me apaixonar... enquanto dançavas, pulavas, sorrias e a espaços cantavas, como uma criança. olhei-te e não consegui deixar de o fazer. pensei és fantástica e nesse momento encheste-me, completaste-me e fizeste-me acreditar que o amor acontece uma segunda vez. desejei-te, não o teu corpo suave, mas aquilo que tu és. uma paixão sem desejo.

depois olhaste-me e sentiste-te observada. sorriste, envergonhada. por momentos ficaste apenas fitando-me à espera que eu percebesse que não querias que te olhasse. depois pediste-me pára de olhar. sorri num quase riso de olhar atordoado. pensei és tu e antes de desviar o olhar observei o teu corpo e senti só podes ser tu.

amei-te num amor sem desejo. assim penso para afastar o sofrimento que me causarei por ti.

hoje decidi seguir o teu conselho. não achas que era altura de gastares o dinheiro que não gastas e encheres estas paredes, são arrepiantes? foi a primeira vez que vieste cá a casa. as paredes práticamente brancas nunca me fizeram impressão. sugeriste uma loja de quadros onde já tinhas comprado várias coisas.

pus-me a caminho, com o papel em que escreveste as indicações. sais do metro viras na primeira à esquerda, na segunda à direita e de novo na primeira à esquerda. passando a farmácia tens um largo do lado direito e a loja é do outro lado do jardim. perdi-me. o meu sentido de orientação é péssimo e a velhota a quem tentei perguntar se conhecia a loja só me soube dizer não sou de cá.

entrei numa loja para comprar tabaco e vi um postal, que comprei. colei-o na parede ao lado da minha secretária e passei o resto da tarde a fumar o maço de cigarros e a olhar para a fotografia do postal. ao fumar o último cigarro percebi, se as ruas em que caminho fossem como as de paris eu nunca teria esperança de ser feliz.


falas comigo e sinto-te distante. como se por telepatia tivesses descoberto aquilo que sinto por ti e que tento a todo o custo esconder. partilhei apenas com uma pessoa estes sentimentos. comigo. hoje quando fazia a barba olhei-me nos olhos e disse gosto de ti, e disse também isto nunca vai chegar a lado algum, nunca vou ser capaz de gostar de ti como quero gostar. nunca vou ser capaz de te amar. percebi-o ontem quando estavamos sentados lado-a-lado a olhar o mar, em silêncio. senti que o silêncio te incomodava. que tinhas necessidade de falar. de dizer algo. o silêncio foi-te desconfortável.

deste-me um abraço sabendo que seria o último que me irias dar. sabias já que eu me ia refugiar noutras pessoas. para te esquecer. sabias que se me voltares a ver nunca será como foi ontem. depois arrependes-te. mais tarde ainda percebes finalmente que já não me poderás ter. que aquela tarde foi a última vez em que eu quis entregar-me-te. agora não quero. é tarde demais. gostos das coisas simples e estes jogos irritam-me porque não sei jogar.

é domingo e já é tarde.

...apoderei-me do silêncio...

...o silêncio apoderou-se de mim...

agora não consigo falar, não consigo escrever. tenho medo de quando me voltar a sentar, a mão que segura a caneta se recuse a escrever. tenho medo de deixar de ter uma vida para além de mim, uma outra vida minha que não é minha de todo. tenho medo, tanto medo. medo do desconhecido. medo do amanhã. medo de continuar a viver. medo de me perder. quero estar só.

...o silêncio apoderou-se de mim...

hoje acordei e estava sol, tinha saudades, a chuva não parava de cair há uma semana. Algo me fez pensar que o dia ia ser diferente. Sol de pouca dura... Cruzei-me contigo, esforcei-me por te ignorar, mas tu vieste a correr a chamar-me para toda a gente ouvir. Não quis fazer uma cena. disse-te olá simulando um sorriso. perguntei-te tudo bem? tentando que isso soasse verdadeiro. não me parece que tenha resultado. disseste continuas o mesmo e viraste-me costas.

apanhei o metro e saí na estação da baixa-chiado. passeei um pouco por aquelas ruas aproveitando as últimas gotas de sol deste dia que julguei que pudesse ser diferente. pensei em ti enquanto caminhava. pensei o mesmo de sempre. que é melhor assim.

pensar perturba-me. é um mal que tenho, penso demasiado. não páro de pensar. nem quando estou a dormir. canso-me. censo em ti e concluo que o melhor é afastar-te. despir-me de ti. despedir-me de ti. até nunca mais.

é triste que as coisas tenham que ser assim. é triste que tudo aqui que dediquei a ti, só a ti, se perca agora. porque considero que o meu pensamento não perde valor pelo facto de o exercer permanentemente. a ti, dediquei muitas horas desse meu exercício involuntário. a ti, dediquei muitos sentimentos que agora, se pudesse, queria de volta. agora, se pudesse, queria-te longe, fora de mim.

ficarás apenas o tempo necessário para te extinguir em mim. o tempo suficiente para que este amor se transforme em ódio.

hoje dei por mim a adoecer. atolei-me em fármacos e dormi toda a tarde. acordei melhor do corpo, pior da alma. acordei era já noite. desorientado. mergulhado directamente na noite, silenciosa, solitária. a alma doi-me. tomo um comprimido para dormir que não faz efeito. lembro-me que amanhã faço anos e isso deprime-me. deveria ficar contente. mais um ano completo, menos um que falta viver...

hoje, porque fiz uma viagem em vão, porque fui atrás de ti e tu ignoraste. porque esperei à porta de tua casa que tu saísses e tu não saíste. porque estou cansado de não ter dormido durante três dias. porque estou farto de comboios e das pessoas que viajam neles que só me deprimem ainda mais. estou farto de estar sempre a mais. estou farto de estar sempre só. FODA-SE! se não me queres por perto diz que não me queres por perto. escusava de ter saído de casa. por uma vez decidi agir e foi como se tivesse ficado no mesmo sítio. escusava de ter gasto oito contos no alfa pendular só porque achei que chegando mais rápido, te via mais depressa e mais depressa te devolvia para perto de mim. Mas nem assim. voltei com a mesma necessidade de chegar depressa para poder arremessar o meu corpo no sofá e lá ficar imóvel, numa total abstinência de viver.

estou derrotado. Porque achei que te ias dignar a abrir-me a porta, a perdoar-me, mas não... não podes fazer isso porque o teu orgulho te impede. voltei e quando o comboio parou numa qualquer estação (talvez Coimbra) levantei-me e fui a correr para a casa de banho para ter vergonha de mim mesmo. Saí de lá quando senti o comboio a andar de novo e quando retomei o controlo de mim mesmo. acho que a ideia de as pessoas na estação me verem no limiar do desespero me iria fazer chorar irremediavelmente até lisboa.

hoje, porque estou farto da apatia, tomei uma decisão.

sentei-me na cadeira junto da janela e não olhei para fora. antes, olhei para as fotografias que tenho na parede. mergulhei nelas e mergulhei no copo de vinho que pousado na mesa possuía o brilho da solução para todos os problemas. mergulhei nas fotografias e repito aqueles momentos, como se o tempo não passasse. como se aquelas histórias presas no tempo não acabassem nunca.

o copo já vazio perdeu a vida. na esperança de me ressuscitar enchi-o de novo e bebi-o de uma só vez. o brilho do vinho não passou para mim e a noite prometia ser longa.

chorei. sem ter vergonha das pessoas que passam e me vêm assim. não quis viver. quis ficar parado no tempo como as fotografias na parede. com um sorriso. para que as pessoas assim se lembrassem de mim. feliz.

Se estivesses aqui agora sei o que te diria. Se te visse agora saberia o que pensar. Se te pudesse tocar agora...

Vou à janela de onde te espero ver. Não te vejo e por isso escrevo uma carta que sei que não te vou entregar.

Passam-se horas até a conseguir começar e acabar. Tenho tanto para não te dizer. Tanto que te podia dizer e que prefiro guardar só para mim. Tanto quem me vou arrepender de não ter dito. De não ter feito..

Por isso pego numa folha em branco e escrevo:



«Gosto de ti»



Páro e penso um pouco. Acrescento um ponto final e dobro a folha que guardo numa gaveta juntamente com todas as outras cartas que jamais te escrevi.

Hoje tentei, juro que tentei. Hoje tentei não dormir cansado que estou de o tentar fazer sem conseguir. Para um lado. Para o outro. Fechar os olhos com todas as forças que tenho e ficar acordado. Hoje tentei ficar indiferente a ti. Hoje tentei falar com um amigo que perdi. Hoje tentei e nada consegui. Hoje acabei por dormir. Hoje não consegui ficar indiferente a ti. Hoje não consegui falar com aquele amigo que perdi.

Hoje prometi a mim mesmo que ia esquecer esta paixão estúpida que nasce. Por ti. Hoje tentei ignorar que mexes comigo e que cada vez que ris de algo que eu digo me sinto voar, que cada olhar teu é como se estremecesse por dentro. Hoje percebi que é inútil lutar. Hoje percebi que te quero, que nos teus olhos encontro-me e afasto os problemas. Hoje percebi que fechava os olhos e te via a ti. Sonhava contigo.

Hoje tentei falar a um amigo que perdi. Por minha culpa. Hoje perguntei-lhe se estava tudo bem. Que estava preocupado. Ele disse que sim e mais não disse. Depois ainda lhe desejei um feliz ano novo na trivialidade estúpida de tentar começar uma conversa, mas não pegou. Ele agradeceu e uma vez mais ficou por aí. Morreu ali a conversa. Como também começa a morrer a esperança de ver aquele amigo voltar. Hoje relembrei os momentos bons que passei com ele e relembrei o erro que cometi e nunca desejei tanto como hoje que o tempo pudesse retroceder. Nunca pensei descobrir, hoje, que me faz falta. Que tenho saudades das conversas que tínhamos. Agora falo com quem? A culpa é minha, como sempre.

Hoje tentei não dormir e não consegui. Adormeci deitado no sofá de livro na mão. Acordei com frio e fui-me deitar na cama, vestido. Desejei não acordar. Porque o melhor a fazer neste momento é não acordar. Dormir sem fim. A vida é injusta... Acordei e não consigo dormir...

Ponho o chá a fazer e espero junto da chaleira que fique pronto. Encho uma caneca e sento-me na poltrona perto da janela. Fico a ver chover. Há muito tempo que não chovia assim. Ao ponto das pingas fazerem barulho ao embater na janela, do vento se ouvir assobiar. Dou um trago no chá e sinto-me aquecer. Estou mais confortável. Molhei-me completamente no caminho de tua casa à minha. Penso em ti agora que já não estou contigo. Agora que não te voltar a ver ou a ter. Penso em que é que errei. Penso no que não fiz. Penso no que podia ter feito. Percebo que foi errado desde o início e não penso mais nisso. Nada havia a fazer...

Hoje disse basta. Disse-te que não te queria voltar a ver. Nunca mais. Hoje deixei para trás todos os teus jogos. Não sou mais brinquedo. Não sou mais aquilo que tu querias que eu fosse. Hoje a vida ensinou-me. Hoje disse basta. Disse não. Disse tudo aquilo que nunca tive coragem de dizer. Tudo aquilo que deixei por dizer. Hoje matei-te em mim. Hoje vi-te desfazer à minha frente. Suplicando. Hoje percebeste, finalmente, que me destruíste, que me impediste de viver e me prendeste a algo que eu sempre soube que jamais poderia resultar. Ser feliz. Contigo.

Hoje os meus medos fizeram-se verdade. Coragem. Surgiu no momento em que te disse não. No momento em que te disse amanhã quando acordar não te quero ver em minha casa nem sequer te quero voltar a ver. Apaguei o teu número. Esqueci o teu nome. Para sempre. Foi assim. Hoje acordei e percebi. Hoje abri os olhos e acordei. Para a realidade. Para tudo aquilo que nunca consegui ver porque tu não deixavas.

Agora és tu que rastejas porque me queres, agora és tu que sofres por mim, porque o que achaste que não aconteceria nunca, aconteceu. Manipulação. Perdeu o seu efeito. Não, já te disse que não. Não vale a pena chorares. Vai embora. Sabes onde fica a porta. Sabes que tudo isso vai acabar quando saíres desta casa. Quando encontrares outro eu para brincar. Mas eu não. Acabou.

A revolta agora é minha, quem manda sou eu. Não te quero ver. Não quero saber de ti. Nada. Matei-te em mim. Morreste. Quando saíres não me vou arrepender. Não vou chorar. Sei que fiz o que tinha que ser feito. A derrota agora é tua. Xeque-mate. Perdeste. Lamento. Por mim. Por todos os minutos de vida que desperdicei. Por todos os sóis que vi porem-se em que não pensei em outra pessoa ou outra coisa. Por tudo aquilo que me fizeste sofrer. Por todas as noites em que não dormi. Por todas as coisas que não fiz por estar deitado a pensar em ti. Adeus. Porque agora tenho a certeza que estou vivo. Mata-me. Em ti.