No final não fica nada, esquecem-se as memórias e as promessas. Arrumam-se os corpos a um canto, cobertos de cicatrizes e cortes ainda sangrentos. Arrumam-se a um canto, amanhã podem já não ser precisos e a alma dura para sempre. Há que cuidá-la. O resto que se lixe. Cubra-se a cara de sorrisos artificiais e inventem-se forças para continuar, mesmo quando já se sabe à partida que o caminho não leva a lugar algum. Voltamos sempre ao mesmo. Não podemos continuar a esconder-nos por detrás dos corpos que já não aguentam ser fustigados.

Não compreendo este entrelaçar de dedos, o carinho lascivo com que nos tratamos. Não percebo se é causa ou consequência de tudo o resto: os corpos susceptíveis ao toque. A tua cabeça a adaptar-se tão perfeitamente ao meu ombro. É ridículo serem só os corpos, como queremos acreditar. São os silêncios em que embrulhamos os braços e os abraços, como se ficasse algo por dizer. Como se houvesse uma lacuna por preencher com um amo-te ou no mínimo um gosto de ti.

Depois recuperamos a compostura. Voltamos à frieza, e às feridas, e ao corpo ensanguentado. Há que cuidar a alma e não dá-la a ninguém. Somos ilhas por vezes unidas por pontes e nada mais que ilhas unidas por pontes. Devorem-se os corpos, consuma-se a pele. Mas a nós que ninguém nos roube de nós mesmos. Porque quando os corpos desaparecerem somos tudo o que resta.

Até já, numa rua de Tóquio ou qualquer outro sítio do mundo. Tenho que partir, nem sei bem porquê. Vens comigo? É que de todas as pessoas que já conheci, os teus defeitos são os mais encantadores. Qualidades todos temos, ou fazemos por ter. Toda a gente tem algo de que é possível gostar. Mas defeitos não. Mas nunca conheci ninguém com um alinhamento de defeitos tão perfeito como o teu. Podia viver com eles para sempre. A irritarem-me e a chatearem-me na mesma, mas tão encantadores.

Porque na realidade, é disso que somos feitos, das pequenas falhas, dos pequenos defeitos, dos pequenos erros que cometemos. E os nossos parecem encaixar tão bem. Vens comigo? Não há nada mais harmonioso que o silêncio de duas pessoas que deveriam ficar sozinhas e que se juntam. Aí nada pode falhar. Vens comigo?

Sossega-me. Diz que não voltas, que posso seguir o meu caminho. Diz-me aquilo que eu já sei. Diz na mesma. Diz-me que valeu a pena, que não te esqueces, mas só isso. Diz-me que é impossível, descabido, surreal. Que é só na minha cabeça que a esperança se acumula. Os dias estavam mais que contados, não estavam? Não havia qualquer salvação. Diz-me que não. Eu sei, mas diz.

Diz-me qualquer coisa. Sossega-me. Diz-me coisas boas. Diz-me aquilo que eu já sei. Diz. Diz na mesma. Diz que vale(u) a pena. Diz-me que não é em vão. Que já tenho um lugar só meu. Sossega-me. Diz-me só que é possível, que não é descabido, que não é só na minha cabeça que a esperança se acumula. Eu sei, mas diz na mesma. Diz que não me esqueces, que é desta que ficas para sempre.

Sossega-me. Diz-me qualquer coisa, e não me censures por me sentir assim. Gosto mais, demais, ainda. Eu sei. Não precisas de dizer. Tens que ir, não te impeço, mas diz qualquer coisa, diz que um dia vais dizer qualquer coisa. Mente. Sossega-me.

– Dá-me um cigarro. Desculpa, esqueci-me de comprar. Obrigado.

Dou duas passas. Três. Quatro. Só mais uma, e apago o cigarro. Olho-te nos olhos e perco a coragem. Como se o teu sorriso fizesse desaparecer todo o mundo lá fora, comigo nele.

– Precisamos de falar, mas não sei bem como dizer isto.

O coração prestes a explodir, a querer explodir. E a cabeça calma. Peço desculpa, mas o Descartes que se foda, não é por pensar que existo mais ou menos. Pelo contrário, é isso que me aniquila em momentos como este. Sinto, logo existo. Quanto muito. E mesmo assim nem sempre.

– Desculpa, não sei por onde começar. Às vezes parece que as palavras se atropelam, sabes? Como se viessem todas à boca de uma vez só. E depois já não sei o que quero realmente dizer. Perco-me. E depois lembro-me de coisas estúpidas pelo meio, se desliguei ou não o fogão, a capa do jornal pendurado no quiosque no fundo da rua. Sim, aquela que tem o café daquele velhinho muito velhinho e muito lento a servir. O senhor Henrique. Por isso é que nunca lá vou de manhã. E depois é esta coisa. Nunca consigo dizer o que tenho para dizer sem me dispersar. Eu sei, estou só a ganhar tempo. Não sei por onde começar, e estou a sentir-me a desaparecer.

Quanto mais falo, pior parece. Cria expectativas, eu sei. Tudo o que possa dizer depois parece que não surte qualquer efeito. Parece desprovido de qualquer significado. Bem sei, depois de todas estas voltas. E depois lá vem o pensamento outra vez, que coisa. E dá-se-me a lucidez da situação. A inclinação do teu corpo na minha direcção, à espera. O cinzeiro a transbordar, o número de cigarros que já tirei do teu maço. E reparo que já não sorris, reparo que as cores ganham vida de novo. Como se tudo resumisse ao aqui e ao agora. Como se não houvesse mais tempo para ganhar, ou para perder. E tivesse mesmo que ir directo ao assunto. Não há nada pior.

– Mas o que eu te queria realmente dizer, ainda que soe a nada, e não sirva de nada. E juro-te que não era isso que queria, mas não soube evitar. E se calhar também não quis. Acho que só me apercebi tarde demais, a negação tem destas coisas. É que esse teu sorriso, esse teu olhar. Gosto de ti. Acho que é isso que queria dizer, só isso que queria dizer. Gosto de ti.