Os sentimentos não se podem quantificar. É simples. Pelo menos, parece. Seja como for não poderemos nunca saber que quantidade de cada sentimentos trazemos dentro de nós, o coração não é uma receita. Não se quantifica em gramas, metros, ou qualquer outra unidade. Eventualmente contabilizam-se as cicatrizes prostradas no músculo, é isso que conta, as feridas ainda abertas e o coração sem parar de bater. Porque se o coração se pode quantificar então também é apenas músculo.

Curioso é que é sempre de mais ou de menos. É amor de mais ou amor de menos. Nunca chega. Sufoca. Foi assim com a Joana, com a Alexandra. Foi assim com a Maria e com a Isabel. Com a Joana foi amor de menos, tudo encaixava, mas o sentimento foi curto, deixava os pés de fora. Não sobreviveu ao Inverno. Com a Alexandra foi o oposto. Amor de mais, amor que sufoca e que se consome e destrói o resto. Que nem era assim tanto. E não sobreviveu ao Verão. Demasiado calor, tive saudades dos pés gelados.

Com a Maria não, ela tinha sempre razão. E se era muito ou pouco, ela é que sabia, embora nunca o dissesse, portanto também nunca soube. Não precisava sequer de responder. O que até poupava trabalho. Acabou e não sei porquê. Com a Isabel sei exactamente o porquê, de ter acabado e de tudo. Falava demasiado, explicava tudo em demasia, exigia explicações em demasia. E acabou de forma quase contratualizada, o que aniquila desde logo toda a beleza ao sofrimento. Conseguia identificar todas as razões e foi tudo tão lógico que só me restou aceitar. Sem sofrimento.

Ainda assim, a melhor parte do amor é que pode ser fingido ou imaginado como qualquer outro sentimento. Porque se escreve amor, não tem que ser amor. A razão tem destas coisas, é uma cínica que finge o que quer e bem lhe apetece. Nunca houve Joana, nem Alexandra. Nunca houve Maria ou sequer uma Isabel. Ainda que possa parecer que sim.

Sou um sem-abrigo. Não tenho um sítio a que chame casa, ainda que tenha tecto e paredes e móveis e coisas. Não pertenço aqui nem ali. Sou de todo o lado. Porque em todo o lado tenho algo que me prende. Pudesse eu pegar em casas e ruas inteiras e trocá-las de cidade. Pudesse eu trazer-te para aqui.

Não consigo parar. Sufoco facilmente em qualquer lado, não estou completo em lado algum, e viajo de um lado para o outro sempre à espera de me encontrar. Triste por ter que ir, feliz por voltar e por chegar, ansioso por partir e ficar. Sempre a ter que escolher entre isto e aquilo. Abdicar de uma coisa em prol de outra. Tudo é que não. Era o que faltava.

Não tenho casa, nem família. Tenho amigos que são quase irmãos e pouco mais. Tenho amor e paixões que nunca o chegam a ser, e quando são há sempre quilómetros pelo meio. Pudesse eu pegar em ruas e cidades inteiras. Pudesse eu trazer-te para aqui, para este estranho mundo e chamar-te um daqueles nomes carinhosos parvos. Pudesse eu encher as paredes de fotos nossas a preto e branco.

Pudéssemos forrar as paredes de livros e discos e filmes antigos. E ficar por lá. Sem mundo lá fora, excepto aos fins de semana que são para passear. Ou conduzir sem destino. Ou ficar a olhar pela janela sem mais nada. Durante a semana não. Ficamos em pijama no espaço a que chamarei casa e não importa onde. Eu a sonhar com outros lugares e tu com o que quiseres. A intersecção de mundos e não a sua soma que acaba sempre em subtracção de nós mesmos.

Sou um sem-abrigo. A minha casa é em viagem, ou ao teu lado.

Havia a estrada e uma música aleatória a tocar. O resto era o silêncio das coisas não ditas, dos segredos guardados até não ser possível continuar a escondê-los. Desculpa mentir. Desculpa ainda não ter explicado. Só nós é que continuamos a insistir em não ver. Pelo menos tu. O segredo é meu e talvez assim deva continuar.

Olhos na estrada, mãos no volante, e tu a passeares o olhar por tudo o que passa. Noventa e sete quilómetros. E não te posso dizer também que depois de todo o silêncio – que, de tão confortável, se fez inexistente – aquele meio-abraço dado a medo soube a tudo. O teu corpo, ainda que ao de leve, contra o meu. Não te vou dizer que cada centímetro de viagem valeu aqueles dois segundos. Não te vou dizer que devia ter regressado há muito e que, se fico, é por ti. Que faz demasiado sentido estar contigo. Que todos os elos de lógica se quebraram na falta de argumentos. Já não sei resistir.

Porque é a ti que lembro, em ti que penso. Estrada fora em silêncio, ou pela noite dentro quando o sono não chega.

A8


fotografia de xary

A certa altura, a Susana encontrou o amor da vida dela. Foi a maior libertação que poderia alguma vez sentir. Agora, podia concentrar-se em encontrar a pessoa com quem passar o resto da vida. Porque são sempre pessoas diferentes. E nunca resulta pelas razões mais estúpidas. Porque é a velha história dos opostos. E o amor da vida é sempre demasiado oposto. Demasiado arrancado do coração.

A Susana, como todos nós, amou demasiado o amor da vida dela. Perdeu demasiado tempo a sonhar, a achar que ia durar para sempre. Perdeu demasiado tempo a dar demasiado de si. O amor da vida tem esta coisa dos demasiados que na altura parece sempre tão perfeito, mas apenas porque não vemos a condenação no fim da estrada. Parecendo que não, o simples facto de se achar que é para sempre estraga tudo, sempre. Porque o amor da vida surge sempre na altura que achamos que mais estávamos a precisar, quando ainda acreditamos incondicionalmente no amor e na paixão e nos sonhos a dois. O amor da vida ainda não tem a maturidade de nos deixar abandonados. O amor da vida é um embate a cem quilómetros por hora contra uma parede, com tudo de espectacular e doloroso que há nisso.

O amor da vida é explosões, prédios a cair, gritos, lágrimas, é música tresloucada em volumes impróprios. São corações a bater demasiado depressa, são demasiadas coisas, demasiado ao mesmo tempo. Tudo muito, em muito. E de repente, acaba. O amor da vida é sempre uma história mal acabada que nunca chega a acabar-se, apenas se esquece. E faz tremer se por acaso se reencontra.

O amor da vida é o das coisas grandes, das coisas pequenas que parecem grandes.

O amor de uma vida não. É tudo aos poucos, não fosse o medo de sermos abandonados de novo. O amor de uma vida não o procuramos, aparece quando não esperamos. É maduro e feito de silêncios sorridentes. É um dia de cada vez. O amor de uma vida surpreende-nos a meio da noite. O amor de uma vida sabe o que dizer, até porque quase sempre compreende realmente o que pensamos e dizemos e vivemos. O amor de uma vida completa-nos, conhece-nos, gosta dos nossos defeitos. Faz por nós aquilo que mais ninguém faria.

A Susana tem oitenta e três anos, ainda está à espera.