Os teus beijos sabem a sonho. Nem a mais nem a menos que a sonho, porque apenas em sonho os tenho. A tua ausência dói, uns dias mais que outros, especialmente hoje. Porque os sonhos já não chegam, porque os lábios suspiram por um beijo que se adia e parece nunca chegar. Mas pior é o corpo que não se deixa enganar e embarca num desejo que necessita execução. A cabeça é uma dependente, vai atrás.

A tua sensualidade devasta, desbasta. O teu corpo ensurdece, e os beijos somam-se, multiplicam-se, ecoam. A roupa cai entre suspiros exasperados, os corpos desejam-se mais e mais. A cabeça é uma dependente, vai atrás, a cabeça já não faz o que tem a fazer e ainda bem. Os corpos sabem, só eles sabem. E quando se unem, o meu corpo ao teu corpo, tudo faz sentido. A cabeça entende e não interfere, deixa-se ir. A cabeça é uma dependente.

A dor e o prazer confundem-se terrivelmente, por momentos pensei que nos estivéssemos a matar. Por momentos pensei que nos estivéssemos a amar. Assim ficámos, os corpos a fazer o que sabem fazer, a cabeça a ir atrás, quase sem pensar. Beijámo-nos, tocámo-nos, trocámo-nos. Os lábios a beijar o beijo há muito adiado, os corpos a saciarem-se um no outro. A respiração pesada, obstinada. Uma guerra que se trava, entre movimentos perpétuos de mãos e ancas que se tocam.

O silêncio. O meu corpo que cai para o lado, exausto, e o teu que se deixa ficar. O silêncio. O acordar. Os teus beijos que sabem a sonho, e a cabeça que aproveita o cansaço e, pela primeira vez, percebe o que é o amor. A tua ausência que dói. E este sonho que parece nunca acordar em ti.

Voz

Sempre vi a música como um acessório. Não me lembro de ouvir música, ponto. É sempre enquanto leio, enquanto escrevo, enquanto me deito na cama e fico a olhar para o tecto à espera que as pequenas manchas de humidade comecem a formar desenhos. Não me lembro de ouvir música, apenas ouvir. Como nos filmes, a música é apenas um acessório, algo que embala a vida, que marca o ritmo.

A Teresa, que canta adoravelmente, não foi excepção. Foi um acessório, daqueles que durante o tempo que dura o encanto abrilhantam a vida, até se tornarem banais. Vi-a pela primeira vez a cantar num bar. Cantava em francês, o que já não é habitual, e só me prendeu a atenção por esse factor. Passei o tempo em que ela esteve a cantar a tentar encaixar as palavras nos pequenos fósseis que me restam das aulas de francês do ciclo. A sonoridade dos pês e dos rês pronunciados da maneira que só os franceses sabem, encantou-me. A música nem a ouvi, não me lembro de a ouvir. Habituámo-nos demasiado ao inglês. A globalização tem destas coisas, impinge-nos o inglês e trouxe-me a Teresa.

Nasceu na Argentina, o pai – que ela visita todos os domingos – é português, a mãe era checoslovaca (quando ela nasceu ainda se chamava assim e foi ficando). Com cinco anos foi viver para França. Uma confusão demasiado confusa que, com toda a certeza, daria uma fantástica biografia. Não é todos os dias que um português e uma checoslovaca se encontram na Argentina e se apaixonam. Aliás, nunca soube pronunciar o apelido materno da Teresa da forma correcta, demasiadas vogais juntas. Felizmente o pai era português e tinha um apelido fácil de pronunciar: Lopes.

Quando acabou de cantar, desceu do palco. Misturou-se com o público. Esperei que acabassem os aplausos, que lhe oferecessem as flores. Esperei que os amigos (porque há sempre amigos no público) lhe dessem os parabéns, e pedi-lhe um autógrafo. Perguntei-lhe onde podia comprar o disco e ela disse-me que ainda não havia. Convidou-me para beber um copo, o que me poupou trabalho. Há sempre medo de ouvirmos um não quando convidamos alguém estranho.

Uma semana depois estava a viver comigo, o que eu tolerei. Tinha por hábito cantar incessantemente enquanto estava em casa, o que me poupava o trabalho de pôr um disco logo pela manhã. Gostava de a ouvir cantar pelos corredores. Passeávamos ao fim da tarde, durante o dia eu fazia o que tinha a fazer, ela cantava. De vez em quando víamos um filme. Pouco mais coincidia nas nossas vidas que o facto de habitarmos o mesmo espaço, partilharmos a mesma cama. Ela gostava de cantar, eu gostava de ouvir, era o que nos unia.

Um dia ela lançou um disco. Eu, que nunca cheguei a cansar-me de a ouvir cantar, fui assistir a mais um concerto. O bar era o mesmo em que conhecia a Teresa, mas tudo mudara entretanto. Gradualmente, o bar enchera-se de gente. Em cada concerto, às caras habituais juntavam-se caras novas.

Quando o concerto acabou, fui o primeiro a cumprimentá-la (porque há sempre amigos no público), o primeiro a comprar o disco e a pedir-lhe um autógrafo, que ela não me tinha chegado a dar. Prometi a mim mesmo que havia de o ouvir sempre ao acordar. Sempre. Ofereci-lhe uma flor, encostei a minha cabeça à dela e, segurando o disco como uma promessa, disse-lhe ao ouvido “É a última noite que passamos juntos, já tenho a tua voz”.