P = 0

Reuniu todos os dados, pegou na calculadora e, durante dias, rodeou-se de números e contas e equações. Adorava matemática, em especial o cálculo de probabilidades. Dizia que era o mais próximo que se podia chegar da prestidigitação. Cálculo após cálculo. Correlou teorias, variáveis. Zero. P sempre igual a zero. P = 0. P = Nunca. Os números não mentem, não enganam, nem tampouco conhecem a ironia. Nada houve a fazer. A Matemática nunca erra. A Matemática traçou, com precisão científica, o nosso destino. Nunca. Sem argumentação possível.

Então, porque para ela os números eram tudo, entregou-se a eles, deixou que os cálculos precisos e exactos orientassem a sua vida. Respondia com percentagens às propostas que lhe apresentavam. Nunca dizia sim ou não, respondia em probabilidades. E a nós zero. Sempre zero. Então pedi-te que recalculasses, que juntasses as variáveis da emoção. Acrescentei: o mundo é feito de impossibilidades. Tu sorriste e lançaste-te sobre a calculadora que não mentia. Adicionaste as variáveis a pedido. Mesmo assim P = 0 = nunca. Levantaste-te, desligaste a calculadora, disseste lamento, os números não mentem.

Atravessaste a sala, deixando para trás a mesa repleta de papéis preenchidos com fórmulas matemáticas, e duas ou três calculadoras. Vinhas na minha direcção quando te vi sorrir, acho que pela primeira vez te vi sorrir. Beijaste-me e voltaste a sorrir. Puseste de lado a calculadora e os números. Passaste a responder com uma incerta precisão que nem os números conseguem calcular. Descobriste nas artes uma aventura muito mais fascinante e passaste a acreditar na astrologia.

Sempre achei complicado perceber o que a Luísa queria realmente dizer com certas coisas. Acho que muitas dessas coisas dizia só por dizer, ou porque lhe parecia algo inteligente de ser dito. Há frases que parecem encaixar perfeitamente em certas situações, mesmo que não queiram dizer absolutamente nada. A Luísa sempre cultivou aquela postura de intelectual – tão típica dos esquerdistas – que nunca era mais do que pseudo. Contudo, essa postura garantia-lhe o acesso a certos circuitos sociais que, desde adolescente, ambicionava frequentar.

Magnetizava-se facilmente a escritores, sem que soubesse escrever mais que um recado ou um post-it. Porém, os escultores eram a sua assolapada – e assumida – paixão. São as mãos que criam, que moldam, percebes? – e eu não percebia, afinal todas as artes surgem das mãos. Mãos que escrevem, que seguram o pincel, que seguram o martelo e o escopro. Não, nunca percebi a sensualidade de bater com um martelo num escopro, que não é mais que um prego grande, e arrancar bocados de pedra. Se me falasse do traço de um desenho, das pinceladas numa tela, do ritmo de um poema, talvez conseguisse chegar a compreender. Não, não gosto de escultura.

A Luísa que se inscreveu num curso de escultura, moldou a partir de barro uma incrível variedade de cinzeiros e taças que ofereceu aos amigos como conquistas. Disfarçava a falta de jeito com óculos de massa e adjectivando a suas esculturas de naif. Pseudo no meio de pseudos, sabia mexer-se e melhor ainda jogava os seus trunfos. A Luísa não era nada, nem escultura, nem artista. Gostava de arte, e era tudo.

Mais tarde descobriu que gostava de fingir e dedicou-se ao teatro, tendo o mesmo sucesso que na escultura. Os amigos todos adoraram as peças, as de barro e as de teatro. Ela sabia disso, mas fingia que não. Ela sabia disso, e um dia não conseguiu fingir mais. Nesse mesmo dia, a Luísa telefonou e pediu-me que a fosse buscar e que a levasse para qualquer lado e que a amasse e que fugíssemos dali para fora, para longe de tudo, dos pseudo-amigos, das pseudo-artes. Às sete horas fui buscar a Luísa que tentava disfarçar que tinha passado as últimas horas a chorar. Entrou no carro, segurou-me a mão e disse por favor não digas nada. E eu não disse, limitei-me a conduzir.

A Luísa tem apenas um defeito, é tão bonita que dói. A ela, mas principalmente a mim, que me deixei arrastar para longe de tudo. Principalmente a mim quando descobri que apenas eu não fingia.

Não se afastavam mais do que um antebraço de distância. Como se os seus corpos nus os envergonhassem. Assim, bem juntos, não havia espaço para observar muito mais que os olhos, talvez o resto da face. Nada mais conseguiam ver um do outro.

Faziam amor muito juntos, ele por cima dela, sempre ele por cima dela. Cada vez que ele se tentava levantar mais um pouco ela segurava-o. Ele aceitava, sabia que cada uma dessas tentativas não era fruto de uma distracção momentânea causada pelo prazer. Ela perdoava todas essas tentativas.

Ela raramente se vinha. Nas duas ou três vezes em que se deixava levar pelo prazer mantinha o silêncio o mais que podia, que conseguia. Como se o seu corpo manifestando prazer também a envergonhasse.

Quando ele se vinha, saía de cima dela, deitava-se ao lado, de costas para ela e só mudava de posição depois de ela sair pelo outro lado da cama e a ouvia fechar-se na casa de banho. Vestia-se apenas quando ouvia o chuveiro correr. Quando ela voltava já ele dormia. Ela demorava sempre mais um pouco que o necessário para não correr o risco de ele ainda estar acordado.

Deitava-se, e deixava-se ficar um pouco acordada. Pousava um livro aberto sobre a barriga para o caso de ele acordar, e punha-se a sonhar. Com outro corpo que não o dela, com outro homem que não aquele, com um gemido de sincero prazer…